domingo, 8 de novembro de 2009

À mesa com MALuco

“Alice e as sombras de seu país das maravilhas representam para nós os papéis que representamos no mundo real. Sua loucura é trágica ou divertida, eles mesmos são loucos exemplares ou testemunhas eloqüentes da loucura de seus irmãos sombrios, eles nos contam histórias de comportamentos absurdos ou insanos que refletem os nossos, para que possamos vê-los e entendê-los melhor. A diferença reside em que sua loucura, diferentemente da nossa, está contida entre as margens da página, emoldurada pela imaginação incerta de seu autor. Crimes e maldades, no mundo real, têm fontes tão profundas e conseqüências tão longínquas que não conseguimos compreendê-los completamente, podemos apenas recordá-los rapidamente, guardá-los num arquivo judicial ou observá-los sob as lentes da psicanálise. Nossas ações, ao contrário das ações das grandes criaturas loucas da literatura, infiltram-se extensivamente pelo mundo, infectando cada coisa e cada lugar para além de toda ajuda e propósito.

A loucura do mundo é ininteligível. Podemos (e o fazemos, é claro) experimentá-la, sofrê-la no corpo e na mente, cair sob seu peso impiedoso e ser arrastados por sua corrida implacável rumo ao precipício. Também podemos, em alguns momentos iluminados, emergir dessa loucura por meio de atos extraordinariamente humanos, irracionalmente sábios e insanamente audazes. Para tais atos, palavras não são suficientes. E no entanto, com o melhor da linguagem, podemos capturar nossa loucura em suas próprias ações, obrigá-la a se repetir e a representar suas crueldades e catástrofes (e mesmo suas façanhas gloriosas), mas dessa vez por meio de uma observação lúcida e com uma emoção protegida sob a coberta asséptica da literatura, iluminada pela lâmpada de leitura sobre o livro aberto.

Os seres de carne e osso sentados à mesa com o Chapeleiro Maluco – os líderes militares, os torturadores, os banqueiros internacionais, os terroristas, os exploradores – não podem ser forçados a contar sua história, a confessar, a pedir perdão, a admitir que são seres racionais culpados por crueldade internacional e atos destrutivos. Mas é possível narrar histórias sobre eles que permitem certa compreensão do que fizeram e uma empatia judiciosa. Seus atos não admitem nenhuma explicação racional, seguem uma lógica absurda, mas sua loucura e seu terror podem ser captados por nós, em todo o seu fogo devorador e esclarecedor, em relatos ou “mapas” nos quais eles misteriosamente podem emprestar a nossa loucura uma espécie de racionalidade iluminada, transparente o bastante para esclarecer nosso comportamento, e ambígua o suficiente para nos ajudar a aceitar o indefinível.”

MANGHEL, Alberto. À mesa com o Chapeleiro Maluco. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. págs. 28 a 30)



João

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