domingo, 29 de novembro de 2009

reflexo

escovar os dentes com a outra mão

domingo, 22 de novembro de 2009

summertime

Duchamp xadrez


Página 234 :: a obra exposta

(...)
“Foi uma batalha gloriosa, não?” disse o Cavaleiro Branco, aproximando-se ofegante.
“Não sei”, disse Alice, hesitante. “Não quero ser prisioneira de ninguém. Quero ser uma Rainha.”
“E será, quando tiver transposto o próximo riacho”, disse o Cavaleiro Branco. “Vou levá-la em segurança até a orla do bosque... e depois tenho de voltar. É o fim do meu movimento.”
“Muito obrigada”, disse Alice. “Posso ajudá-lo a tirar o elmo?” Evidentemente aquilo era demais para ele fazer sozinho; mas finalmente ela conseguiu livrá-lo do apetrecho.
“Assim fica mais fácil de respirar”, disse o Cavaleiro, jogando seu cabelo desgrenhado para trás com as duas mãos e voltando para Alice seu rosto bondoso e seus olhos grandes e meigos. Ela pensou que nunca tinha visto um soldado tão estranho em toda a sua vida.
(...)

“Mas são dois tipos diferentes de engasgo”, Alice objetou.
O Cavaleiro sacudiu a cabeça. “Comigo, eram engasgos de todo o tipo, posso lhe garantir!” disse. Ergueu as mãos num certo arrebatamento ao dizer isso, e instantaneamente rolou da sela e caiu de cabeça num fosso fundo.
Alice correu para a borda do fosso para procurá-lo. Estava muito espantada com a queda, pois por algum tempo ele se saíra muito bem, e temia que dessa vez estivesse realmente machucado. Contudo, embora só pudesse ver as solas dos seus sapatos, ficou muito aliviada ao ouvi-lo falar num tom habitual: “Todos os tipos de engasgo”, ele repetiu, “Mas foi negligência dele pôr o elmo de outro homem... com o homem dentro, ainda por cima.”
“Como consegue falar tão calmamente de cabeça para baixo?” Alice perguntou, enquanto o puxava pelos pés e o deitava num monte na borda do fosso.
O Cavaleiro pareceu surpreso com a pergunta. “Que me importa onde está meu corpo?” disse. “Minha mente continua trabalhando do mesmo jeito. Na verdade, quanto mais de cabeça para baixo estou, mais invento coisas novas.”
“Veja, a coisa mais engenhosa desse tipo que já fiz”, continuou após uma pausa, “foi inventar um novo pudim enquanto a carne estava sendo servida.”
(...)
Alice só pode ficar perplexa; estava pensando no pudim.
“Parece triste”, disse o Cavaleiro, aflito. “Deixe-me cantar uma canção para consolá-la.”
“É muito comprida?” Alice perguntou, porque já tinha ouvido um bocado de poesia aquele dia.
“É comprida”, disse o Cavaleiro, “mas muito, muito bonita. Todos os que me ouvem cantá-la... ficam com lágrimas nos olhos, ou...”
“Ou o quê?” Quis saber Alice, pois o Cavaleiro fizera uma súbita pausa.
“Ou não, é claro.”
(...)
De todas as coisas estranhas que Alice viu em sua viagem através do Espelho, esta foi a de que sempre se lembraria mais nitidamente. Anos depois seria capaz de evocar toda a cena, como se tivesse acontecido na véspera: os meigos olhos azuis e o sorriso gentil do Cavaleiro... a luz do poente cintilando através do cabelo dele, e iluminando-lhe a armadura num esplendor de luz que a deixava inteiramente ofuscada... o cavalo andando calmamente em volta, com as rédeas pendendo soltas do pescoço, mordiscando o capim a seus pés... e as sombras negras do bosque ao fundo... Tudo isso ela observou como um quadro, quando, com uma mão protegendo os olhos, encostou-se numa árvore, observando o estranho par e ouvindo, como num sonho, a música triste da canção.
“Mas a melodia não é invenção dele”, disse para si mesma, “é ‘Eu lhe darei tudo, mas não posso dar’.” Ficou quieta e ouviu, com muita atenção, mas nenhuma lágrima lhe veio aos olhos.
(...)
Ao cantar as últimas palavras da balada, o Cavaleiro empurrou as rédeas e virou a cabeça para o lado da estrada pela qual tinham vindo. “Você só precisa andar alguns metros”, disse, “morro abaixo e transpor aquele riachinho, e então será uma Rainha... Mas antes vai ficar e me ver partir?” acrescentou, quando Alice se virou muito animada para a direção que ele apontara. “Não vou demorar. Vai esperar e acenar com seu lenço quando eu chegar àquela curva da estrada? Acho que isso me daria coragem, sabe.”
“Claro que vou esperar”, disse Alice, “e muito obrigada por ter vindo tão longe... e pela canção... gostei muito dela.”
“Espero”, disse o Cavaleiro, sem muita convicção. “Mas não chorou tanto quanto eu pensei que choraria.”
Assim, apertaram-se as mãos e em seguida o Cavaleiro rumou lentamente para o interior do bosque. “Não vou demorar muito para vê-lo cair, tenho certeza”, Alice disse de si para si. “Pronto! Bem de ponta-cabeça, como de costume! No entanto, monta de novo com muita facilidade... isso porque tem tantas coisas penduradas em torno do cavalo...” Assim ficou, falando consigo mesma, enquanto olhava o cavalo a marchar pachorrento pela estrada e o Cavaleiro a levar trambolhões, primeiro de um lado, depois de outro. Após o quarto ou quinto tombo ele chegou à curva, e então ela lhe acenou com seu lenço e esperou até que sumisse de vista.
“Espero que isso o tenha encorajado”, disse enquanto se virava para correr morro abaixo.


“Alice através do Espelho”, capítulo 8: “É uma invenção minha”
– O Cavaleiro Branco é Lewis Carroll



sábado, 21 de novembro de 2009

# 5

Poeminha de Bar #5



As bolinhas da camisa:

cumplíces das ebolições escondidas.


(Sissi Venturin e Kalisy Cabeda)


Até amanhã. ;-)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

# 4

Poeminha de Bar #4



Para fluir,

Há que fugir

Do beco,

Sair do canto,

Cair.



(Sissi Venturin)

Até amanhã. ;-)

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

# 3 Desejo Oitentista

Publicado originalmente no blog normal people BORE ME


Poeminha de Bar #3


O meu OB irradia

ondas de íons e elétrons

que decifram

a radiografia do meu desejo Chernobyl.



Contamino os homens que se aproximam,

que mordem os lábios e mostram os dentes,

mas que no fim

sucumbem, frios.



O meu amor é pulsante.

Devasto cidades e aldeias,

sempre à procura

daquilo que me foi prometido

mas que nunca, nunca, nunca.



(Kalisy Cabeda e Diones Camargo)


Até amanhã. ;-)

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A Aceitação do Caos e o Suicídio do Cotidiano*


*Texto publicado originalmente no blog normal peolple BORE ME


"Eu aceito o caos. Só não tenho certeza se ele me aceita.", disse certa vez o Dylan ou o Rimbaud, não sei ao certo. Pois dia desses, mexendo na bagunça que acumulo na minha estante, encontrei um pequeno caderno de anotações. Ao folheá-lo, lembrei de um determinado período deste ano: era lá por Abril ou Maio; fazíamos a segunda temporada consecutiva de Teresa e o Aquário, na Sala Álvaro Moreyra. Sissi, Leo, Kalisy, João, Bruno, Lisandro, Roger e eu costumávamos sair do teatro pra irmos jantar juntos e depois beber em bares por aí, aproveitando esses momentos em que um objetivo comum nos reunia. E assim, sorvendo o quanto nossos trocados e moedas ainda podiam nos presentear, esquecíamos - como é costume - as decepções e angústias que cada um trazia consigo e que, naquela época, ainda era pulsante para alguns de nós. Nessas noites, onde só o que restava era seguir o imperativo do tempo e esperar que ele mesmo - causador de certos ferimentos - fizesse seus curativos invisíveis, nós confrontávamos a tristeza com álcool e gargalhadas ferozes (algo do tipo: "se ela é foda, eu sou ainda mais!").

E foi durante uma dessas noites inspiradas que inventamos um jogo: a partir de palavras aleatórias e sem qualquer obrigação ou regra específica, exceto o divertimento, criávamos pequenos textos poéticos. Pequenos regurgitamentos de memórias, imagens e sonoridades que pulavam - elas também - bêbadas sobre a mesa; se a um ocorria algo, outros acrescentavam palavras e frases, mexiam aqui e ali na estrutura, num processo de anotação rápida como relâmpagos de inspiração que nos esforçávamos pra registrar - sabedores que somos da brevidade dos instantes.

Assim, noite após noite, foram surgindo os textos e os desenhos que hoje tenho guardados nas páginas destes cadernos. Assim também, misturados uns aos outros, organizamos a nossa ode ao caos e à indisciplina; rabiscos com garranchos ilegíveis, que denotam mais a empolgação daqueles instantes do que o descuido da pressa. Objetos raros, que trazem em si um pouco da imaginação de cada um, e de todos nós como um grupo conectado. E esses momentos despretensiosos - e às vezes até ingênuos - serão sempre lembrados por mim como momentos vividos entre amigos, onde os drinks e a liberdade criativa nos davam o que de mais divertido podemos ter na vida: a sensação de que no fundo o que fazemos é (e sempre será, devido à sua própria natureza) uma grande brincadeira - nonsense, talvez, mas imensamente prazerosa - apesar das dores que eventualmente temos que suportar.

Então, reproduzo abaixo o segundo texto desta série que a Sissi apelidou de "Poeminhas de Bar", ou também, numa desarticulação da fala, "Poesinhas de Mar" (clique aqui para ler os primeiros que a Sissi postou no blog do Teresa). Foi este aí embaixo que eu encontrei em meio à bagunça do meu quarto e que me fez finalmente decidir mostrá-los. Prometo que a partir de hoje postarei um por dia, antes que o ano termine. Mas antes ainda - e já antecipando os momentos parecidos que virão em 2010 - um brinde aos bons amigos, às noites de embriaguez e ao "desregramento de todos os sentidos"!


#2


Astrolábio

descascado

infecto

de Vênus.


(Kalisy Cabeda e Diones Camargo)


segunda-feira, 16 de novembro de 2009

pois zé

Às vezes nos sentamos sozinhos no meio de livros de arte e ficamos vendo os rostos conhecidos que marcaram a historia e ficamos pensando quando será a nossa vez.
Às vezes estamos fazendo tantas coisas para os outros, por causa de um pouco de grana, por causa de um pouco de medo, por causa de sede, por causa de fome, e ficamos olhando para o sol lá fora e pensando quando será possível parar e ser apenas o sol.

Às vezes estamos sentados ao sol pensando na arte e em quando será a nossa vez, e de repente acordamos desse devaneio sonífero de dentro de nós por uma árvore que tomba aos nosso pés, por um estrondo, pela morte que tomba e aterriza ao celular, na caixa postal dos emails.

Às vezes acordamos e vemos a morte e pensamos quando será a nossa vez.
Quando a morte tomba, nós aterrizamos e pensamos que não há vez, que ela não chega, que ela está.

hoje estou atordoada. hoje estou atrapalhada, atrasada, cansada, amedrontada, arrependida, apavorada, ansiosa, chorosa, tremendo, palpitando, fugindo, trabalhando, cansando, não entendendo, descobrindo.

hoje eu estava sentada olhando todos os livros de arte à minha volta, falando de renomes falando de fatos, e atendi o celular e fiquei sabendo que meu amigo, nosso amigo, o ator, o zé mário storino faleceu. foi de repente como foi de repente outras pessoas a pouco tempo, foi de repente como será sempre e tantas mais

eu estive na vida, eu tenho estado por aí, eu tenho me perdido e sentido nada e medo junto, eu tenho amputado, comido, acovardado, seiplanciado, excluído. eu tenho calado, eu tenho fugido, eu tenho sorrido, doído, rasgado, derramado, bebido, tocado, dormido e sonhado.
eu tenho estado tão só quanto eu quis. eu tenho deixado estar quando o outro quis. eu nem tenho mais o que eu achei que...

estou costurando
as le
trás

as lãs as
lâminas
as agulhas
as carcaças de cebola e alho na carne cozida na frigideira

fumaçacarinhoemmim, farinhaumfavor!
fumaçacarinhoassim-comoseflorescesse
capimdoce

comoseflorescesse arrepiodopêlocaminho.

abóborame!


tenho temos tido temido túmulos tumultuado coração, secreção, ereção, salpicão, salidão, salão salinha sol e drão
o zé era tão especial, legal, macio, cheio de vida de muito mais adiante. ele tinha ele tem 52 anos. é mesmo uma barca, Carol, é mesmo uma barca!

...

às vezes a gente senta e fica olhando a tela do computador, a tela
a tela
tela

perdoa
doa
perdi a proa, o bico, o salto. Mas não perco-me.
(Esquisito é achar-se inteiro. Desse modo, melhor perdido ou encontrado?)
Sentido, com certeza melhor sentido!
Vai a barca rumo a algum norte.
O do humano, o da morte.




segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O papel político do artista na propagação da dignidade humana

Quando nos olhamos num espelho, pensamos que a imagem que temos diante de nós é exata. Porém, basta nos movermos um milímetro e a imagem muda. Estamos olhando, na verdade, para uma infindável gama de reflexos. Mas às vezes um escritor precisa quebrar o espelho – pois é do outro lado do espelho que a verdade nos encara. Apesar das enormes variáveis existentes, creio que a determinação intelectual destemida, inarredável e feroz, como cidadãos, de definir a verdade real de nossas vidas e de nossa sociedade, é uma obrigação crucial, que cabe a todos nós. Ela é, de fato, imperiosa. Se essa determinação não estiver incorporada à nossa visão política, não teremos esperança de restabelecer o que está quase perdido para nós – a dignidade humana.

Harold Pinter, discurso do Prêmio Nobel.



Aquele velho grisalhão!

domingo, 8 de novembro de 2009

À mesa com MALuco

“Alice e as sombras de seu país das maravilhas representam para nós os papéis que representamos no mundo real. Sua loucura é trágica ou divertida, eles mesmos são loucos exemplares ou testemunhas eloqüentes da loucura de seus irmãos sombrios, eles nos contam histórias de comportamentos absurdos ou insanos que refletem os nossos, para que possamos vê-los e entendê-los melhor. A diferença reside em que sua loucura, diferentemente da nossa, está contida entre as margens da página, emoldurada pela imaginação incerta de seu autor. Crimes e maldades, no mundo real, têm fontes tão profundas e conseqüências tão longínquas que não conseguimos compreendê-los completamente, podemos apenas recordá-los rapidamente, guardá-los num arquivo judicial ou observá-los sob as lentes da psicanálise. Nossas ações, ao contrário das ações das grandes criaturas loucas da literatura, infiltram-se extensivamente pelo mundo, infectando cada coisa e cada lugar para além de toda ajuda e propósito.

A loucura do mundo é ininteligível. Podemos (e o fazemos, é claro) experimentá-la, sofrê-la no corpo e na mente, cair sob seu peso impiedoso e ser arrastados por sua corrida implacável rumo ao precipício. Também podemos, em alguns momentos iluminados, emergir dessa loucura por meio de atos extraordinariamente humanos, irracionalmente sábios e insanamente audazes. Para tais atos, palavras não são suficientes. E no entanto, com o melhor da linguagem, podemos capturar nossa loucura em suas próprias ações, obrigá-la a se repetir e a representar suas crueldades e catástrofes (e mesmo suas façanhas gloriosas), mas dessa vez por meio de uma observação lúcida e com uma emoção protegida sob a coberta asséptica da literatura, iluminada pela lâmpada de leitura sobre o livro aberto.

Os seres de carne e osso sentados à mesa com o Chapeleiro Maluco – os líderes militares, os torturadores, os banqueiros internacionais, os terroristas, os exploradores – não podem ser forçados a contar sua história, a confessar, a pedir perdão, a admitir que são seres racionais culpados por crueldade internacional e atos destrutivos. Mas é possível narrar histórias sobre eles que permitem certa compreensão do que fizeram e uma empatia judiciosa. Seus atos não admitem nenhuma explicação racional, seguem uma lógica absurda, mas sua loucura e seu terror podem ser captados por nós, em todo o seu fogo devorador e esclarecedor, em relatos ou “mapas” nos quais eles misteriosamente podem emprestar a nossa loucura uma espécie de racionalidade iluminada, transparente o bastante para esclarecer nosso comportamento, e ambígua o suficiente para nos ajudar a aceitar o indefinível.”

MANGHEL, Alberto. À mesa com o Chapeleiro Maluco. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. págs. 28 a 30)



João

sábado, 7 de novembro de 2009

:: Sobre um dia qualquer :: no Vimeo

Curta-metragem "Sobre um dia qualquer", de Leonardo Remor.
Vencedor de cinco prêmios na Mostra Gaúcha de Curtas do Festival de Cinema de Gramado este ano (direção, arte, fotografia, montagem e atriz [eu]).
Também ganhou Melhor Filme no MIAU, em Goiânia, e no Festival Primeiro Plano, em Minas Gerais.

Sobre um Dia Qualquer from Marcos Lopes da Silva on Vimeo.

Alice e o Rei

"Agora está sonhando", observou Tweedledee. “Com que acha que ele sonha?”
Alice disse: “Isso ninguém pode saber.”
“Ora, com você!” Tweedledee exclamou, batendo palmas triunfante. “E se parasse de sonhar com você, onde acha que você estaria?”
“Onde estou agora, é claro,” respondeu Alice.
“Não, não!” Tweedledee retrucou, desdenhoso. “Não estaria em lugar algum. Ora, você é só uma espécie de coisa do sonho dele!”
“Se o Rei acordasse”, acrescentou Tweedledum, “você sumiria... puf!... exatamente como uma vela!”
“Não sumiria!” Alice exclamou indignada. “Além disso, se sou só uma espécie de coisa no sonho dele, gostaria de saber o que vocês são?”
“Idem”, disse Tweedledum.
“Idem, ibidem”, gritou Tweedledee.
E gritou tão alto que Alice não pode se impedir de dizer: “Psss! Receio que vá acordá-lo se fizer tanto barulho.”
“Bem, não adianta você falar sobre acordá-lo”, disse Tweedledum, “quando não passa de uma das coisas do sonho dele. Você sabe muito bem que não é real.”
“Eu sou real!” disse Alice e começou a chorar.
“Não vai ficar nem um pingo mais real chorando”, observou Tweedledee. “Não há motivo para choro.”
“Se eu não fosse real”, disse Alice – meio rindo por entre as lágrimas, tão absurdo aquilo tudo parecia – “não conseguiria chorar.”
“Espero que não imagine que suas lágrimas são reais!” Tweedledee interrompeu-a, num tom de profundo desdém.


- GARDNER, Martin ; CARROLL, Lewis. Alice, edição comentada. Ed. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 2002.




(foto de Elene Usdin)

dos homens, o alimento dos deuses

Ontem à noite li a peça “A Fome” no Quinquilharia.
Foi uma noite linda, intensa e suada.
Depois de exato um ano que o texto estava “guardado” desde seu último tratamento, foi levado a público, e que público!
Me sinto muito comovida por diversos motivos. Primeiro deles porque este texto é uma criação em conjunto, onde eu propus ao Marcos uma idéia e ele pescou o peixe e me emprestou o anzol e eu pesquei outro e ele outro e eu mais outro e a gente foi enchendo a pança. Foi um processo muito generoso e dedicado, e as pessoas gostaram tanto do que conheceram ontem, que o mar se encheu novamente.
Segundo, justamente pelas pessoas, os amigos e seus olhos brilhosos e suas palavras de afeto e seus silêncios e abraços verdadeiros e seus ouvidos atentos. Que lindo! Alguns deles não estavam lá, uns estarão numa próxima, outros estavam em espírito e memória, muita memória.
Terceiro, mas não menos importante, pelo trio Quinquilharia, os anfitriões, os guardiões da casa dos segredos que ali foram compartilhados. Carina, Bárbara e Poof, vocês são um grande abraço, vocês me ofereceram a casa e abrigo. Quebrando com as expectativas, “o mesmo lugar ficou diferente” e estivemos usando a própria casa de Carina, no andar de cima do bar. Hoje quando acordei me dei conta do que aconteceu ontem. Por ser em outro espaço não foi cobrado ingresso, e Carina se dedicou durante toda a noite a abrir garrafas de champanhe em estalos sonoros felizes no ar como foguetes de festa, e serviu um ponche refrescante e delicioso a todos, enquanto lá fora a chuva caía. Ao final, o Poof passou o chapéu, e fui paga com o valor integral recolhido pela leitura. Na hora acho que não agradeci da forma como agora percebo que deveria. É realmente comovente quando se encontra essas pessoas de coração aberto, em tempos em que arte, encontros, até afeto e amor são mediados por ingressos e tarifas, poder ter tido a oportunidade de trazer os amigos a um espaço que abriu suas portas para mim e mais ainda para todos, oferecendo por conta da casa aquele ponche colorido e boa música. Obrigada de coração quente e esperançoso. A noite do dia 06 de novembro já é inesquecível. Foi a primeira mostra de um trabalho que ainda vai longe e adiante, porque pelo encontro de ontem, pelas respostas, pela loucura que se fez entre nós que lá estávamos, só sei que será preciso seguir com fome sendo alimentada para ser forte e grande.
Por último, e mais importante, obrigada, Marcos. Obrigada pelas palavras, por tudo. De coração com o teu.


Abaixo uma imagem da noite...
Quadro de Jos Roosevelt

terça-feira, 3 de novembro de 2009

:: A Fome :: 06/11 :: sexta-feira

"Como quando eu pulei pela primeira vez do trampolim, cheguei lá em cima e pulei! Mas na segunda vez... não consegui. Fiquei achando alto demais, quando ia dar o impulso, uma força me parava. Daí veio um garoto e passou na minha frente. Ele também teve medo; ficou na beirada olhando para a piscina. Eu disse pra ele que não tinha perigo, que ele não fosse medroso. Mas ele estava realmente com medo. E eu o empurrei! Ele lá embaixo caiu na água apavorado, e eu achei que tinha feito uma coisa boa por todos nós."

A Fome
de Marcos Contreras e Sissi Venturin
leitura do texto por Sissi


.... my heart burns... I put the love inside the gloves

dia 06 de novembro
sexta-feira
às 22h30
no Quinquilharia
(Rua Otávio Correa, 84 - Cidade Baixa)
R$ 5,00


"E dá pra notar pelo estado do meu cabelo que ainda é cedo, mas já ta na hora. Dá pra notar pelo vermelho nos meus olhos e os hematomas nas minhas coxas e os nós no meu cabelo, que eu não estou certa de forma alguma. Lá vou eu de novo, fingindo que vou cair, que to fraca, que vou chorar, que sou feia, que não sei o que to fazendo e o que vou fazer. Me fazendo de fingida. Lá vou eu de novo, fingindo que sou tu, fazendo de conta que eu tenho uma alma por trás dessa superfície."

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Kate no aquário

A Quadrilha da Lagosta

(...) Por fim a Tartaruga Falsa recobrou a voz e, com lágrimas lhe correndo pelas faces, recomeçou:
“Talvez você nunca tenha vivido muito tempo no mar...” (“Nunca”, disse Alice), “... e talvez nunca tenha sido apresentada a uma lagosta...” (Alice ia começando a dizer “Provei uma vez...”, mas engoliu a língua mais que depressa e disse: “Não, nunca”) “... então não pode imaginar que coisa deliciosa é uma Quadrilha da Lagosta!*”
“Realmente não”, disse Alice. “Que espécie de dança é essa?”
“Ora”, disse o Grifo, “primeiro se forma uma fila ao longo da praia...”
“Duas filas!” exclamou a tartaruga Falsa. “Focas, tartarugas, salmões e assim por diante; depois, quando você tiver acabado de remover toda a água-viva...”
“O que geralmente leva tempo”, interrompeu o Grifo.
“... dá dois passos à frente...”
“Cada um de par com uma lagosta!” exclamou o Grifo.
“É claro”, disse a Tartaruga Falsa. “Dois passos à frente, balancê...”
“... troque de lagosta e se afaste na mesma ordem”, continuou o Grifo.
“Depois, sabe”, continuou a Tartaruga Falsa, “você joga...”
“As lagostas!” gritou o Grifo, dando uma pirueta no ar.
“... no mar, o mais longe que puder...”
“Nada atrás delas!” berrou o Grifo.
“Dá um salto mortal no mar!” exclamou a Tartaruga Falsa, cabriolando freneticamente.
“Troca de lagosta de novo!” esgoelou-se o Grifo.
“Volta à terra de novo, e a primeira figura está terminada”, disse a Tartaruga Falsa, baixando a voz de repente; as duas criaturas que tinham estado ali pulando como loucas aquele tempo todo, se sentaram de novo, tristonhas e cabisbaixas, e olharam para Alice.
“Deve ser uma dança muito bonita”, disse Alice timidamente.


* A Quadrilha, uma dança em 5 figuras, era uma das mais difíceis danças de salão em moda na época em que Carroll escreveu sua história.

Amigos e Imagens

Presente de Brummno...


"Aquele velho gostoso... grisalhãããuummm!!"
hahahahaha

o sorriso do gato

Hans Haverman escreveu para sugerir que o Gato evanescente de Carroll podia derivar da Lua minguante – há muito a Lua é associada com a loucura – à medida que ela se transforma lentamente numa tira estreita, parecida com um sorriso, antes de desaparecer.
Teria T.S. Eliot tido o Gato de Cheshire em mente quando concluiu “Manhã à janela” com o couplet abaixo?

Um sorriso sem destino que no ar vacila
E se dissipa rente ao nível dos telhados.


- GARDNER, Martin ; CARROLL, Lewis. Alice, edição comentada. Ed. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 2002.

domingo, 1 de novembro de 2009

o suspiro ao piscar

Subi o monte
encontrei o topo
dancei a orquestra de areia
o dia da bruxa
As estrelas eram a própria cidade iluminada
aos meus pés, as palavras rastejavam
os grãos murmuravam como purpurina
o giro do ventre.
Entre a antena e o céu está a fronteira.
O rosto estava no alto e foi baixando,
foi crescendo, se aproximando,
escondeu-se num véu de nuvem e voltou sorrindo.
O olho do peixe. O rosto cheio chegou tão perto
que fechei os olhos.
a boca, a fome aberta...
(o tem-po que le-va a lá-gri-ma ca-den-te)...


A lua derreteu, escorregou e saiu à francesa.
Nem vi. Mas é como se ela ainda estivesse ali

regando a ferida

Nessas luas o corpo fica aberto como um caqui...




(Charlotte Lewis por Michel Comte)