Hoje iremos experimentar uma proposição fruto do nosso caldo de pensamento em relação a arte ao corpo a nós mesmos como coletivo de artistas de teatro e como pesquisadores.
Lygia Clark tem sido um magneto de grande força humana e estética dentro e fora da Cia. Sua obra tem reverberações que atingem tanto a performance art quando as reflexões amplificadas sobre como como por exemplo no conceito de CsO de Artaud e depois desenvolvido por Deleuze-Guatarri.
Propomos uma ação coletiva.
Task:
Juntos, leremos alguns textos sobre lygia Clark, sobre performance art sujeito e corpo.
Juntos, enxeremos de ar muitos sacos de plástico, desses de supermercado até que o espaço da sala de ensaio que estamos utilizando fique cheio dessas expanções do nosso corpo-respiração.
A proposta será documentada por Bruno Barreto.
A Proposta será vivenciada pela Cia. Espaço em BRANCO
João de Ricardo, Sissi venturin, Marcos Contreras e Lisandro Bellotto.
alguns textos referênciais:
O RETORNO DO SUJEITO
ENSAIO SOBRE A PERFORMANCE E O CORPO NA ARTE CONTEMPORÂNEA
Tania Rivera é psicanalista e Professora da Universidade de Brasília. Doutora em Psicologia pela Université Catholique de Louvain, Bélgica. Pós-Doutorado em Artes Visuais na escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006).
Five points make a man (cinco minúsculas gotas d’água)
James Lee Byars
Um amigo me contava, noutro dia, a trágica história de uma conhecida que ficou tetraplégica, após um grave acidente. Ele falou de sua perturbação diante do primeiro e-mail enviado por ela, do hospital, utilizando algum tipo de instrumento para digitar com a boca: “Estou viva”. Lembrei-me imediatamente de On Kawara e dos cartões postais que ele enviava a pessoas do meio artístico com a inscrição: “Eu ainda estou vivo – On Kawara”.
Mais forte do que a escrita, a presença corporal de alguém, ao se oferecer ao olhar do outro, não seria essencialmente uma declaração inequívoca de que 'se está vivo' – o que sempre significa que 'ainda' se está vivo? “Todas as minhas obras”, dizia James Lee Byars em 1978, “serão anuladas com a minha morte” . O que a presença do corpo denuncia, para além de qualquer reafirmação de sua existência individual, é sua fugacidade, a condição mortal, passageira do homem. Como indica o título de um trabalho de Byars, um quadrado de folha de ouro com 3x3 metros sobre o chão, no salão de entrada de uma exposição em Berlim em 1989, The Perfect Performance is to Stand Still.
Gostaria de ressaltar, na performance, mais uma terrível ausência do que a presença mais ou menos espetacular do corpo.
Corpo e Sujeito
Emprestar seu corpo à obra, dar à obra um corpo, ou ainda, fazer do corpo uma obra – essas expressões não dizem tudo, e mostram o jogo mesmo de que se trata entre corpo e arte, entre corpo e sujeito. Algo se subtrai e nos atinge, na presença maciça de um corpo oferecido ao olhar. Nesse jogo, refletir sobre a Performance é construir uma reflexão sobre a própria noção de sujeito, hoje. Em outras palavras, a performance põe em questão o sujeito – e a arte, talvez seu reduto mais próprio.
Parto do pressuposto de que o sujeito está no centro da questão da arte. Isso poderia parecer um viés subjetivisante, ou, pior, psicologizante. Acredito, porém, que a arte contemporânea é marcada por um verdadeiro 'retorno do sujeito', de forma articulada ao que Hal Foster, em um famoso texto, propõe como 'retorno do real'.(2) Após a crítica à mimesis, realizada pelas vanguardas modernistas, que desmantelou a bem-aventurada e calculada relação entre o sujeito da pintura e a 'realidade' representada, o sujeito, assim como o real, se faz valer de fora do espaço da representação contra, ao mesmo tempo, ilusionismos e formalismos. O real que, segundo Foster, retorna na arte contemporânea, e que ele explora especialmente no que diz respeito à Pop Art, constitui uma alteração do real como realidade mimética construída de forma ilusionista. Por uma torção talvez sutil, porém violenta, não se trata mais aí da realidade como janela para o mundo dada por e para um olho fixo.(3) Trata-se do Real do léxico de Lacan, aquele que é uma espécie de fundo último das coisas, destacado da imagem, e que se trata sempre de tentar representar, sem que tal operação jamais se cumpra de forma definitiva. Real traumático, terrível, com o qual o sujeito se depara repetida e violentamente.
O sujeito de que se trata hoje na arte não é mais aquele olho soberano capaz de ordenar a representação em regras mais ou menos fixas. Ele é outro: descentrado, não está mais no centro organizador da representação. O sujeito que retorna na arte contemporânea se desmaterializou e problematizou suas fronteiras em relação ao outro, no mesmo passo em que se temporalizou e se deslocou em uma nova concepção, fragmentada, do espaço. Uma vez abandonado seu lugar como origem inequívoca da representação, o sujeito volta de fora da representação, como corpo real, o que reconfigura suas relações consigo próprio, com o objeto e com o espaço. O sujeito recusa-se a se assimilar ao olho ideal e, nesse deslocamento, perde seu lugar de direito para retornar como questão, convocação direta do espectador.
Se, como diz Robert Smithson, “a fotografia torna a realidade obsoleta”,(4) o sujeito que zanzou pelo 'deserto' de Malevitch sem se encontrar no espelho, veio a dar, de esbarrão, nas impecáveis ruínas que são os objetos minimalistas, objetos que quase recusam o sujeito para afirmar-se como entidades autônomas, puros objetos. Para se destacar da representação mimética, é necessário que eles neguem o sujeito como seu par. Por mais 'específicos' que sejam, porém, para usar o termo de Donald Judd, eles não deixam, sorrateiramente, de reafimar a presença do sujeito. “(...) As três dimensões são principalmente um espaço para mover-se”, já considerava o artista em seu fundamental Objetos Específicos, de 1965.(5) O minimalismo recoloca a interdependência entre objeto e sujeito em termos não mais complementares, mas alternantes: o objeto, como o cubo de seis palmos de Tony Smith, diz ao sujeito: Die! (morra, este é seu título). Seis palmos, reflete o próprio Smith, “sugere que se está morto. Uma caixa de seis palmos. Seis palmos sob a terra”.(6) Extraído do campo da representação para se inserir nas coordenadas do espaço circundante, o objeto faz aí um inequívoco apelo ao sujeito, convidando-o a se perceber e se mover nesse espaço real em que, eventualmente, o objeto vem violentamente atingi-lo.
Georges Didi-Huberman mostrou convincentemente o quanto as esculturas de Smith são objetos-questões, o que podemos entender como objetos que põem radicalmente em questão o sujeito (diante do cubo de Smith, diz o autor, “nosso ver é inquietado”,(7) pois somos postos diante do que Mallarmé chama de “calmo bloco caído de um desastre obscuro”).(8) Desde o ready-made, o objeto já punha em questão seu autor e qualquer idéia de autoria, ressaltando o contraste entre as “intenções do artista”, como diz Duchamp, e o produto realizado. Curiosamente, se o autor é desbancado, é para que melhor possa surgir o sujeito, do lugar que lhe seria de direito: 'de fora'. São os olhadores que 'fazem o quadro', na famosa fórmula de Duchamp.(9)
Contra qualquer psicologia a se fazer arauto da 'interioridade' do eu e defender sua 'exteriorização', em uma ideologia expressionista, a psicanálise é a reflexão que surge na aurora do século XX, para literalmente 'pôr o sujeito fora de si'. O eu, diz a frase lapidar de Freud, “não é mais senhor em sua própria casa”.(10) Talvez ele nem tenha mais casa, uma vez que o inconsciente o desaloja, faz de seu mais íntimo o que Lacan denomina êxtimo, cunhando um neologismo para denominar o que é mais íntimo, e no entanto vem de fora.
Seria seu corpo a sua casa, como parece defender Lygia Clark com seus A Casa é o Corpo e O Corpo é a Casa? Não, no corpo o sujeito está um tanto desconfortável. Não há coincidência entre mim e meu corpo, isto é o que a linguagem comum acentua todos os dias, quando dizemos “tenho um corpo”, mais do que “sou um corpo”. No espaço, tal “casa” abre-se para uma imprevisibilidade, um nomadismo, um trânsito que é o contrário da idéia de um lócus fixo e assegurador. “O espaço arquitetural me transtorna”, diz Lygia, explicando em seguida o que seria tal espaço: “Pintar um quadro ou fazer uma escultura é tão diferente de viver em termos de arquitetura”.(11) É nesse sentido do 'transtorno' que o espaço vivido impinge ao sujeito que deve ser tomada a afirmação de Freud, seguindo nisso os poetas, de que a primeira casa do homem, sua única legítima casa, absolutamente asseguradora, mas de saída perdida, seria o ventre materno.(12)
Não basta uma apresentação do corpo, seja ela orgiástica, dolorosa ou poética, para que se reafirme o sujeito. Ricardo Basbaum denunciou com muita pertinência, em uma conferência recente promovida pela exposição Jardim das Delícias, a existência de uma 'anestesia' atual em relação à performance.(13) Não creio que tal anestesia seja devida a condições desfavoráveis de recepção, como desinteresse ou massificação extrema etc. Talvez essa anestesia se deva ao fato de que, hoje, não basta a presença do corpo para que a verdadeira questão do sujeito se coloque. Em alguns trabalhos atuais, talvez faça falta uma reflexão poética que se engate na fugidia condição do sujeito na contemporaneidade.
Eu e o Outro
Ainda que diversas manifestações presenciais do artista possam pretender a uma afirmação identitária com, por vezes, ressonâncias políticas, o essencial aí é que o corpo se dá a ver. “Toda carne”, escreve Merleau-Ponty em 1960, “e mesmo aquela do mundo, irradia fora dela própria”.(14) O eu apela ao outro, relembrando sua dependência constitutiva, que faz o seu íntimo estar fora, êxtimo, entre ele e o outro – ele mesmo, como sujeito, só podendo aparecer de forma efêmera, fugaz, como efeito de um ato que se dá entre ele e o outro. Não se trata, porém, de mero jogo de espelhos. As linhas de Nazca, no Peru, só podem ser vistas em sua totalidade de avião, sendo portanto invisível seu conjunto para o povo que as construiu, pois foram feitas para um olhar absoluto, Outro. Há neste dar-se a ver um apelo além do espelho, uma tentativa um tanto sacrificial, a bem dizer, que visa co-memorar (relembrar) o próprio surgimento do sujeito em sua dependência e demanda ao Outro.
Marina Abramovic em Rhythm 0, realizada em 1974, se entregava inteiramente à manipulação dos espectadores, a quem oferecia para tal fim objetos como batom, perfume, fósforos, água, uma vela, uma arma, uma bala, uma serra, um machado, agulhas, uma tesoura, mel, uvas, enxofre: “Há setenta e dois objetos sobre a mesa que podem ser usados em mim como desejarem. Eu sou o objeto”.(15) Seis horas mais tarde, após Marina ter sido despida, cortada, pintada, limpa, coroada com espinhos e ter tido a arma, carregada, apontada para sua cabeça, a performance foi interrompida por espectadores preocupados com seu desfecho.
Yoko Ono já havia, em sua Cut Piece, de 1964, convidado o público a utilizar uma tesoura afiada para cortar suas roupas, desnudando-a.(16) Ambas artistas, nessas ações, oferecem-se ao outro como objeto, levando ao seu limite a alternância entre sujeito e objeto, revelando a condição fundamental do eu como objeto para si mesmo e para o outro, e sua possibilidade de se oferecer ao outro como objeto – se assujeitar – para poder tomar a posição de sujeito (e desejar, ou seja, reafirmar seu apetite do objeto). É necessário varrer de nossa idéia a tradicional diferenciação complementar entre sujeito e objeto, para poder espiar entre eles uma certa vertigem, uma fabulosa e perigosa oscilação. Não se trata, aí, de tornar-se outro como em um jogo de espelhos, sem restos e de forma inócua, numa complementar troca de papéis. Trata-se, para o sujeito, de assumir, por um breve instante quase insuportável, sua condição de quase-objeto, e com isso ver-se quase-sujeito: não propriamente sujeito de seus atos, mas assujeitado a eles. Algo se corta como a roupa de Yoko, algo cai e se perde, nessa arriscada encarnação do sujeito realizada pela Performance.
A proposta de Marina Abramovic deixa claro o caráter de participação buscada no espectador. Trata-se aí de uma espécie de armadilha: os espectadores tornam-se, diante da proposta e, mais radicalmente, da encarnação da mesma pelas artistas, participantes cruéis e capazes de quase matar essas artistas, surpreendentemente – ou melhor, conforme o esperado, em acordo com próprios instrumentos a eles oferecidos e a declaração-ato da artista (“Eu sou o objeto”). Faço-me cortar, faço-me ferir e ameaçar graças ao outro, enlaçando-o num circuito irresistível, pois materializo aí um quase-objeto que põe em vertigem seus olhadores. Estes podem, então, sentir-se chamados a reduzir esse quase-objeto a um verdadeiro objeto – nem que seja, recurso extremo e infalível, por sua morte.
Trata-se aí de um “ato cujo trajeto de alguma maneira tem que ser cumprido pelo outro”,(17) como diz Lacan a respeito do ato analítico. Tal ato seria a unidade mínima, essencial, de um processo analítico, que resultaria no que Lacan chama “efeito de sujeito”. O sujeito não é mais do que um rápido efeito que se perde em seguida, ele não goza de nenhuma constância, ao contrário do eu que é imagem enganosa surgida no espelho com a promessa, nunca inteiramente cumprida, de permanecer sempre a mesma. O sujeito é efeito de um ato que se dá numa trajetória, num circuito que necessita do outro, o convoca e só com ele se completa.
A performance é também, em última instância, um apelo ao Outro, à alteridade radical e não ao meu outro semelhante, como as linhas de Nazca. Em Rhythm 0, isso se materializa na intervenção de alguns espectadores, que interrompem a performance por temer que participantes chegassem a ferir ou até mesmo matar a artista. O Outro – no caso de algumas performances, a polícia – lhe vem em salvação, evitando o destino de Schwarzkogler, acionista vienense que morreu em decorrência da auto-mutilação impetrada durante uma performance, em 1969. Mais do que uma comunicação com o outro, a presença corporal do artista implica num oferecimento-apelo ao Olhar Outro. Isso é o que confere a uma ação realizada sem público, e mesmo de forma totalmente privada, a possibilidade de ser tomada como uma performance – não seria tal oferta e apelo ao Olhar, aliás, a radical implicação de todas as formulações defendendo a própria vida como arte?
Por vezes, a performance agencia um convite a que o espectador se ofereça também a este Olhar, tornando-se aí verdadeiramente participante da performance. Ou ainda, ela monta uma espécie de armadilha, a partir do jogo eu-tu – assim Sophie Calle convida pessoas para dormir em sua cama, parecendo dizer: vem, tome meu lugar (Les Dormeurs, 1979). Nada de ação: apenas durma. A artista fica ali, olhando, velando e, eventualmente, fotografando o sono desses dormidores de empréstimo. Mas e seus sonhos, quem os olha?
Ato e Sujeito em Lygia Clark e Lacan
Mais do que a espetacular expressão, a presença do corpo, a performance acentua uma passagem, um instante de natureza necessariamente fugidia. Talvez resida aí sua definição essencial, como ação passageira. Vem daí sua forte e essencial resistência ao registro – mesmo quando este é buscado, e cuidadoso: o registro não é a performance, ele a mostra de forma fragmentada e parcial. Glória Ferreira defendeu de forma muito pertinente, em uma conferência recente, que o filme e as fotografias concedem à performance uma “inscrição no universo da imagem”. Por mais que eles façam, da performance, imagens, não a confundimos com esses 'registros'. Eles não são, em si, a performance. Esta não se fixa em imagem, dela só restam dejetos, restos, sejam eles textos, vestígios, trouxas ou fotos. Uma performance, em si mesma, parece sustentar que belo é o que passa, o que se termina, o que é efêmero e se apresenta já nos anunciando sua perda – como defende Freud, em um passeio com Lou-Andreas Salomé e o poeta Rainer-Maria Rilke, por ele registrado, em 1915, no belo texto Sobre a Transitoriedade.
(...) O valor de toda essa beleza e de toda essa perfeição é determinado unicamente por sua significação para nossa vida de sensações, ela nem mesmo necessita durar mais do que esta e é portanto independente da duração temporal absoluta.(18)
A 'vida de sensações' – ou seja, a vida tout court – se dá frente a uma perda iminente. O essencial se passa num átimo para nos deixar na saudade. “O doloroso”, diz Freud ainda neste pequeno ensaio, “também pode ser verdadeiro”.(19)
Resistente ao domínio da imagem, denunciadora da falácia do objeto per se, a performance não pode se definir pela presença do corpo, mas apenas por uma realização que se inscreve em um momento temporal para, em seguida, perder-se essencialmente. Ela é sobretudo ato. Tal ato implica, como vimos com Yoko Ono e Marina Abramovic, em um dispositivo que recoloca em jogo as posições de sujeito e objeto, convocando o olhar.
O sujeito não tem lugar fixo, mas se desloca entre dentro e fora, deslizante, segundo a lógica da fita de Moebius, essa tira de papel formada a partir de uma torção da superfície, seguida pela união de suas duas pontas, tornando-se uma superfície de uma só face. Muito explorada por Lacan em seus seminários, desde 1962, a fita se configura por uma torção que permite que se passe de dentro para fora sem passar pela borda, e o sujeito não é mais que tal torção, o caminhar nessa superfície que se dá de forma contínua no tempo. Lacan não é o único, naquele momento, a se interessar por essa banda unilátera, que promove uma verdadeira subversão em nosso mundo de representação, implicando em uma verdadeira reconfiguração do espaço. Alguns anos antes, o suíço Max Bill havia feito dela uma referência fundamental para a arte brasileira, com a histórica presença da Unidade Tripartida (1948-49), na primeira Bienal de São Paulo (1951). Escher a apresentara, em 1961, em sua Fita de Moebius I, e a faria com formigas passeando em sua superfície contínua em 1963, na Fita de Moebius II. Lacan, por sua vez, fazia os auditores de seu Seminário sentirem ativamente essa figura topológica que põe em continuidade dentro e fora numa mesma superfície e ressaltava a importância do corte da fita na linha de seu comprimento, que não produz duas bandas moebianas, mas uma só fita não-moebiana. Para o psicanalista, a fita de Moebius não seria mais do que esse corte, ato que faz nela surgir a diferenciação entre dentro e fora. É provavelmente por isso que Lacan a define como “o suporte estrutural do sujeito como divisível”.(20)
Já Lygia Clark, em seu Caminhando, de 1963, faz do corte transversal da fita unilátera o próprio trabalho artístico. Esse corte virtualmente infinito, pois pode prosseguir incessantemente, gerando uma banda cada vez mais longa, até que a largura da fita não permita mais que a tesoura prossiga – nele a fita de Moebius quase desaparece – torna-se não mais do que o ato de cortar, incessante, e no entanto limitado. O sujeito, aí, não se divide de uma vez, mas se temporaliza, torna-se mais agudamente este corte ao se fazer, se põe em marcha como nada mais que esse próprio ato, materializa-se como não mais do que um sutil, mas poderoso efeito de subversão espacial. O Caminhando põe radicalmente em questão o estatuto do objeto e do sujeito na arte, em prol de nada além de um simples ato se desenrolando no tempo. O objeto quase desaparece, e deixa de ser o complemento fixo, correlativo do sujeito. O ato promove uma espécie de coalescência entre objeto e sujeito que desloca um e outro, em favor de um espaço definido pelo movimento.
“Em seu diálogo com minha obra O Dentro é o Fora”, afirma Lygia Clark, “o sujeito atuante reencontra sua própria precariedade. Também ele – como o Bicho – não tem fisionomia estática que o defina. Ele descobre o efêmero por oposição a toda espécie de cristalização. Agora o espaço pertence ao tempo continuamente metamorfoseado pela ação. Sujeito-objeto se identificam essencialmente no ato”.(21) O sujeito atuante, móvel, promove uma redução do espaço ao tempo, fazendo com que aquele perca a virtualidade imagética que classicamente o definia. Campo de metamorfoses, o espaço torna-se ato, refazendo o sujeito só depois de se produzir, após passar, tornar-se passado, perder-se no tempo. “O ato de se fazer é tempo”, sentencia Lygia.(22)
Em Capturar um Fragmento de Tempo Suspenso – ainda sobre este ponto de virada em sua obra que é o Caminhando, de que ela diz só importar “o ato-vivo-do-fazer” –, Lygia acentua o perigo que o ato põe em jogo, a forma como ele põe em risco o sujeito:
O Caminhando me deixava dentro de uma espécie de vazio: a iminência do ato, o abandono da transferência ao objeto, a própria dissolução do conceito de obra e de artista, tudo isso provocava em mim uma grande crise a qual, inconscientemente, eu já estava buscando há muito tempo.(23)
“Através do Caminhando perco a autoria”, constata então a artista, “incorporo o ato como conceito de existência”.(24) Mas o ato subverte a noção de 'existência': não sou, propriamente, em mim mesma, mas aconteço, em ato. Com ele, em decorrência dele, uma vez o ato realizado, só depois dele. De produtor do ato, sua origem, o sujeito torna-se caminhante, errático e temporário resultado, efêmero efeito. Lacan fala de “(...) um ato tal que ele destitui, em seu fim, o próprio sujeito que o instaura”.(25) Lygia: “o depois está implícito no ato se fazendo”.(26)
O Caminhando fará Lygia chegar ao 'pensamento mudo': nada além de pensamento, que nem precisa ser falado para o outro, que não é falado nem para si próprio, tal pensamento vai além da idéia de comunicação, ele é quase uma negação total do sujeito em prol do puro silêncio. Nada de narração, nada de objeto, nada de sujeito, nada de espaço. Fragmento de tempo, em uma espécie de performance absoluta: pensar mudo. Penso, logo aconteço. Ato invisível, inaudível, incomunicável. Estou viva.
Por um Espaço do Ato
Tal ato – digamos, tal ato poético – é radical e estranhamente delicado. Lacan refere-se a um 'gesto', como o de passar uma página, que seria capaz de mudar o sujeito.(27) Vibração sutil, oscilação da vida por um fio, que intervém de chofre no espaço comum, comunitário, para mudar-lhe as feições. No teatro, digamos, tradicional, a separação entre cena e público assegura a partilha entre ficção e realidade, abrindo o espaço narrativo como uma janela que o espectador não ultrapassa, ou só ultrapassa de maneira pontual. Já a performance nasce misturada à vida, ela é acontecimento e não narração, se põe frente a nós, nos faz esbarrar ou desvia nosso caminho, pretende transformar o espaço cotidiano.
De fato, o ato de que estamos tratando liga-se a uma configuração instável do espaço, a do sujeito em movimento (caminhando), e não mais olho fixo capaz de centrar e possibilitar uma organização perspectiva. Ao espaço ilusionista substitui-se o espaço real, da ação entre sujeito e objeto que se marca no tempo, ou seja, delineia-se aí um espaço de perda, e não mais do espelhamento entre eu e mundo que permite a fixação da imagem. “O homem encontra sua casa”, diz Lacan, “num ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos”. Ele prossegue em uma caracterização lapidar do lugar do sujeito, ou melhor, de sua falta de lugar e da configuração espacial que isto acarreta, para além da imagem em espelho: “Esse lugar representa a ausência em que estamos”.(28)
Tal espaço é difícil de conceber e teorizar, sendo deslizante, imprevisível, lugar de ausência em vez de imagem. No Manifesto Gutai, em 1956, Jiro Yoshihara indica seu caráter perturbador.
Quando a qualidade do indivíduo e o material selecionado se fundem no forno do automatismo, ficamos surpresos ao ver a emergência de um espaço desconhecido, não visto e não experimentado. O automatismo transcende inevitavelmente a própria imagem do artista. Nós tentamos realizar nosso próprio método de criar espaço em vez de depender de nossa própria imagem...(29)
Aí, o 'automatismo' do ato quebra a imagem especular e abre este incrível espaço 'não visto' que, no entanto, é o próprio espaço do Olhar de que falávamos. A reflexão sobre a percepção realizada por artistas os mais variados, especialmente nas décadas de 60 e 70, leva, mais do que à identidade do sujeito consigo próprio, a esta vivência do real que não se cristaliza mais na imagem, mas passa pelo ato. Como diz Lygia Clark: “Instável no espaço, parece que estou me desagregando. Viver a percepção, ser a percepção...”.(30)
Cai a fantasia merleau-pontyana de uma percepção onde o sujeito que percebe é capaz de, reflexivamente, perceber-se percebendo, em uma coalescência entre a mão direita tocando a mão esquerda tocando o objeto.(31) O sujeito não se encontra consigo mesmo na percepção, mas perde-se no espaço, estranhado. Resta a constatação angustiante de que sou objeto de percepção do outro, misturo-me à cena do mundo para um olhar externo, e não detenho a posição autônoma e imperturbável que asseguraria o mundo da percepção abrindo-se ao mesmo tempo que minhas pálpebras. Sou imagem que não se vê completamente a si própria, e portanto me mimetizo ao ambiente – tal é a proposta inovadora que, já na década de 1930, Roger Caillois realizava no contexto da reflexão intelectual ligada ao surrealismo.
Em seu seminal Mimetismo e Psicastenia Legendária, Caillois mostra que a magia mimética, tida no reino animal como uma defesa, pode, na realidade, levar pequenos animais mais diretamente à morte, consistindo em um 'luxo' sem finalidade, ou mesmo um 'luxo perigoso'.(32) Há pequenas lagartas, por exemplo, que mimetizando jovens arbustos se fazem podar por horticultores; outras simulam folhas tão bem que se roem mutuamente. Além disso, estudos mostrariam que são comidos pelos predadores tanto animais que se mimetizam quanto que não se mimetizam, em quantidade semelhante, o que provaria que o disfarce não tem finalidade de proteção. O fundamental, na argumentação de Caillois, é desmontar a idéia de qualquer funcionalidade do mimetismo para mostrar que os corpos tendem a uma espécie de assimilação imaginária ao espaço, por pura captação na imagem. Mais do que isso: entre espaço e a 'personalidade', para usar seu próprio termo, o autor localiza um 'distúrbio'.(33) “Parece até”, diz belamente, “que se exerce uma verdadeira tentação do espaço”.(34)
Rosalind Krauss aproxima do informe de Georges Bataille o mimetismo, por ela caracterizado como “este espasmo da natureza em que os limites são fragmentados e as distinções realmente apagadas”.(35) Mais do que uma crítica da forma, porém, interessa a Caillois sobretudo o papel da ação que torna problemática a percepção e tira literalmente o sujeito de seu lugar.
(...) A percepção do espaço é sem dúvida um fenômeno complexo: o espaço é indissoluvelmente percebido e representado. Deste ponto de vista, é um duplo diedro a todo momento mudando de grandeza e de situação: diedro da ação cujo plano horizontal é formado pelo solo e o plano vertical pelo homem mesmo que anda e que em decorrência deste fato forma o diedro consigo mesmo.(36)
Tudo se transforma, do fato que o homem caminha, se move. Caillois prossegue caracterizando a segunda face do duplo diedro.
Diedro da representação determinado pelo mesmo plano horizontal que o precedente (mas representado e não percebido) cortado verticalmente na distância onde o objeto aparece. É com o espaço representado que o drama se precisa, pois o ser vivo, o organismo não é mais a origem das coordenadas, mas um ponto dentre outros; ele é desapossado de seu privilégio e, no sentido forte da expressão, não sabe mais onde colocar-se.(37)
No mimetismo, a presença do corpo conjuga-se à ação e se submete ao olhar do outro, em uma tentação imagética que faz do sujeito, objeto. Mais do que seduzir ou enganar o outro seu semelhante, trata-se aí do Olhar de que falávamos com as linhas de Nazca, Olhar absoluto que captura o sujeito. Apesar de tratar de pequenos insetos e outros animais, é o homem que a reflexão de Caillois realmente visa. Ele faz menção à loucura, mais especificamente aos esquizofrênicos, como “espíritos desapossados” a quem o espaço apareceria com uma “potência devoradora”. Tais pessoas atravessariam então a fronteira de sua pele e habitariam “do outro lado dos seus sentidos”.(38) É aí que toma sua definição a “psicastenia legendária” do título, referida à teoria de Pierre Janet como uma “despersonalização por assimilação ao espaço”. O sujeito “procura se ver de um ponto qualquer do espaço. Ele mesmo se sente virar espaço, espaço negro onde não se podem pôr coisas. Ele é semelhante, não semelhante a alguma coisa, mas simplesmente semelhante. E ele inventa espaços dos quais ele é a ‘possessão convulsiva’.” (39)
Homem e espaço convulsionados, despossuídos mutuamente. Seria esta uma definição possível da performance: o sujeito tornado espaço? Tal ato subversivo fracassa, porém, pois o espaço não se deixa possuir pelo corpo – antes, o desaloja. A 'invenção' de espaços graças ao movimento do sujeito, proposta por Caillois en passant na citação acima, parece-nos extremamente interessante. O espaço não pode mais ser fixo, ele deve ser inventado, criado em ato na flutuante, movente medida do sujeito.
Lacan, leitor apaixonado do texto de Caillois, afirmará décadas mais tarde que “o que me determina fundamentalmente no visível é o olhar que está do lado de fora”.(40) Apelando radicalmente a esta sua condição de olhado, de sujeito, o artista deixa de sua performance vestígios capazes de convidar-nos, espectadores participantes, ao mesmo gesto transformador. Curiosamente, Lacan acrescenta pouco depois, neste mesmo seminário de 1964: “(...) O mimetismo é sem dúvida o equivalente da função que, no homem, se exerce pela pintura”.(41)
Mas de que 'pintura' se trata? Se um pássaro pintasse, diz o psicanalista, seria deixando cair suas penas; uma árvore, sua casca e suas folhas. No ato mesmo de se exteriorizar, o sujeito perde algo, caem de seu si ob-jetos, de-jetos, jogados, que são uma espécie de materialização de seu próprio descentramento. “Não esqueçamos que a pincelada do pintor é alguma coisa em que se termina um movimento”,(42) diz Lacan, dialogando implicitamente, como muitos artistas naquele mesmo momento, com Pollock e a action painting. Mas não se trata aí de expressão, de dar a ver, no exterior, uma interioridade bem definida, de um indivíduo que se manifesta em sua autonomia e indivisibilidade, e sim de um sujeito que recoloca em jogo seus próprios fundamentos, entre sua imagem e seu gesto, materializando-se como não mais que um resto.
É por esse gesto, dirá Lacan logo em seguida, após lembrar que o pássaro perderia suas penas ao pintar, “é por esta dimensão que estamos na criação escópica – o gesto enquanto movimento dado a ver”.(43) Dizíamos acima que o ato se dá para o outro, enlaçando-o em um circuito em que o outro também age e completa o ato, só depois de sua realização. O gesto vem assinalar, no ato, uma destinação ao Olhar que faz dele um gesto suspenso, um ato fracassado, ação que se contém ou a que se renuncia.(44)
“O que é um gesto?”, pergunta Lacan. “Um gesto de ameaça, por exemplo? Não é um golpe que se interrompe. É pura e simplesmente algo que é feito para se conter e se suspender” . Em Rest Energy, de 1980, Marina Abramovic e seu companheiro Ulay se encontram em um tenso equilíbrio sustentados por um arco e flecha. Ulay segura a base da flecha apoiada no fio do arco em sua máxima extensão, enquanto Marina apóia todo seu corpo na mão que segura o corpo de madeira do arco. A flecha está direcionada para o coração de Marina, e bastaria uma hesitação de Ulay para que ela se desprendesse e a ferisse. A ameaça sustenta os dois corpos inclinados para trás, tensos como o fio do arco, suspensos e paralisados, graças a essa tensão do fio com a flecha. Esta performance parece evocar o risco mortal de uma relação amorosa, a extrema dependência e sujeição a que ela pode levar. Mas este ato amoroso e ameaçador, realizado a dois, torna-se gesto ao se conter e suspender, oferecendo-se ao Olhar. Há uma parada do ato, essencial porque inscreve o gesto em retrocesso: trata-se de ameaça, e não de agressão, justamente porque o ato se suspende. Lacan nota a esse respeito, en passant, a prevalência do gesto, na Ópera de Pequim.
O gesto implica na presença do corpo, e no entanto aponta para fora dele – para pelo menos um outro corpo que o coopta, por uma semelhança empática, amorosa, cuja face escondida é a agressão. Mas é graças ao endereçamento ao Olhar que o gesto se faz como suspensão e perda. Os corpos de Marina e Ulay se engancham em uma energia parada graças a um objeto, o arco-e-flecha, ele mesmo composto de duas partes interdependentes porém destacáveis, formando um mecanismo de propulsão que as separa após ser atingido o máximo de cruzamento entre as duas. Entre os corpos dos dois artistas, um movimento se desenha, uma trajetória que não se cumpre – do corpo parte algo que não se torna propriamente visível, mas atinge seu alvo. Daí a potência da presença do corpo para a convocação do Olhar. “O sujeito do inconsciente”, diz Lacan, “ele se engancha no corpo”(46) – e se propulsiona no corpo do outro, diríamos, para nos atingir no nosso.
Portanto, em tal gesto dado a ver, o sujeito não está totalmente presente – ele está, diz Lacan, como “teleguiado”.(47) Pois aí se acentua, mais do que seu desejo, aquele do Outro a quem ele se dá a ver. O Sujeito torna-se aí, em uma vertigem, quase-objeto, objeto do desejo do Outro, que ele busca ativamente atiçar (olhe-me!).
O sujeito voa por aí como flecha errática (visando nada menos que o coração). Ou flutua, não sendo mais que 'sobrevôo'(48) de pássaro perdendo suas penas, nos fazendo às vezes olhar para cima. Em vez da perspectiva em vôo de pássaro, porém, trata-se de um vôo entre sujeito e objeto: o pássaro cai e passa a fazer parte da paisagem e, num clic de fotografia, nela faz mancha, perdendo suas plumas.
***
Ricardo Basbaum nota que a performance hoje está em quase toda parte, misturada a outros meios na produção contemporânea.(49) Esta é uma indicação preciosa. Mais do que ao abandono da mesma como objeto de estudo, ela talvez nos leve à obrigação de hoje nos recolocarmos a questão: o que é a performance? Mais do que a presença do corpo ou a primazia do comportamento sobre o objeto, o produto, parece-me fundamental aí pôr em questão seu dispositivo operante.
Fala-se muito em desaparecimento ou desmaterialização do objeto na arte contemporânea, e com isso se perde de vista sua fundamental operação sobre o sujeito:
deslocalização e convocação – o sujeito é deslocado, diante do objeto, para aparecer como efeito de sujeito.
Tal efeito de sujeito, poderoso, pois nos punge, assujeita, dá limites e ao mesmo tempo, tenho vontade de dizer, nos faz oceano. Tal catarse, verdadeiro acontecimento (happening?), o acontecimento humano por excelência (pois é o que nos faz humanos), nos refaz em momentos precisos, preciosos, em que o sujeito é o acontecimento. O sujeito é o acontecimento – o sujeito é ato, o sujeito é gesto, é movimento que transforma o espaço, mas só depois, nunca antes, só depois que o outro empresta a esse gesto seu olhar, seu corpo. Caminhante, o sujeito é um “itinerário interior fora de mim”, nas palavras, ainda, de Lygia Clark.(50)
O Teatro Perfeito é uma performance concebida, em 1975, por Byars e, ao que parece, jamais realizada. Cem pessoas, reunidas em um jardim de uma vila européia, dirigem seu olhar suavemente para o horizonte. De repente, ouvem um sussurro: “o teatro perfeito é o olhar”. No horizonte, exatamente à distância que o olho pode discernir, um homem vestido de vermelho aparece por apenas um instante.
Este ensaio teve uma primeira versão apresentada em mesa-redonda na Exposição Jardim das Delícias (curadoria de Alexandre Sá, Daniela Mattos e Isabel Portela), no Museu da República, Rio de Janeiro, em 12 de dezembro de 2006. A investigação que dá origem ao presente texto foi realizada com o apoio do CNPq e contou com a generosa interlocução de Glória Ferreira.
Notas
(1) Apud Grunfeld, Jean F. “Golddust is my Ex-Libris”. In www.museumexperts.com. Retirado da Web em 23 de dezembro de 2006 (Data de publicação indicada: 04/04/2005).
(2) Foster, Hal. The Return of the Real. The Avant-Garde at the End of the Century. Londres/Cambridge: MIT Press, 1996.
(3) Ver, a respeito desta torção, Rivera, T. “Vertigens da Imagem. Sujeito, Cinema e Arte”. In Rivera, T. e Safatle, V. Sobre Arte e Psicanálise. São Paulo: Escuta, 2006, p. 137-162.
(4) Heizer, M.; Oppenheim, D. & Smithson, R. “Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson” (1970). In Ferreira, Glória & Cotrim, Cecília. Escritos de Artistas Anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 280.
(5) Judd, Donald. “Objetos Específicos” In Ferreira, Glória & Cotrim, Cecília. Escritos de Artistas Anos 60/70, op. cit. P. 102.
(6) Apud Didi-Huberman, G. O que Vemos, o que nos Olha, São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 91.
(7) Ibid., p. 95.
(8) Ibid., p. 116.
(9) Duchamp, Marcel. Le Processus Créatif. In: Duchamp du Signe. Paris: Flammarion, 1994b, p. 247.
(10) Freud, Sigmund. Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse (Conferências Introdutórias sobre Psicanálise) (1917). In Gesammelte Werke, Londres: Imago, 1944, vol. XI, p. 295. Tradução nossa.
(11) Clark, L. Do Ato (1965). In Catálogo da Exposição Lygia Clark. Barcelona/Rio de Janeiro et al.: Fundació Tapies e Paço Imperial, 1997/1999, p. 164.
(12) Cf. Freud, Sigmund. Das Unheimliche (O Estranho) (1919). In Gesammelte Werke, Londres: Imago, 1947, vol. XII, p. 259.
(13) No Museu da república, Rio de Janeiro, em 07 de dezembro de 2006. Ver Basbaum, R. “Pensar em Performance”, MAC-Revista, nº 1, São Paulo, Museu de Arte Contemporânea, USP, abril 1992.
(14) Merleau-Ponty, Maurice. L’Oeil et L’Esprit. Paris: Folio, 1992, p. 81.
(15) Apud Warr, T. & Jones, A. The Artist’s Body. Londres: Phaidon, 2000, p. 125.
(16) Ibid., p. 74.
(17) Lacan, Jacques. Sessão 14 (20/03/1968) Seminario 15. El Ato Psicoanalítico. Transcrição inédita.
(18) Freud, Sigmund. Vergänglichkeit (Sobre a Transitoriedade) (1915). In Gesammelte Werke, Londres: Imago, 1946, vol. X, p. 359.
(19) Ibid., p. 358-359.
(20) Apud Kaufmann, P. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. O legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 505.
(21) Clark, L. Do Ato (1965). Op. cit., p. 165.
(22) Ibidem.
(23) Clark, L. Capturar um Fragmento de Tempo Suspenso (Fragmento de “L’Art c’est le Corps”, 1973). In Catálogo da Exposição Lygia Clark, op. cit., p. 187.
(24) Clark, L. Da Supressão do Objeto (Anotações) (1975). In Catálogo da Exposição Lygia Clark, op. cit., p. 265.
(25) Lacan, J. L’Acte Psychanalytique. Compte Rendu du Séminaire 1967-1968, in Autres Écrits, Paris: Seuil, 2001, p. 375.
(26) Clark, L. Do Ato (1965). Op. cit., p. 165.
(27) Lacan, J. L’Acte Psychanalytique. Compte Rendu du Séminaire 1967-1968. Op. cit., p. 378.
(28) Lacan, J. Le Séminaire Livre X. L’Angoisse (1962-1963). Paris: Seuil, 2004, p. 60.
(29) Apud Warr, Tracey; Jones, Amelia, The Artist’s Body, New York: Phaidon, 2000, p. 194.
(30) Clark, L. Do Ato (1965). Op. cit., p. 164.
(31) Cf. Merleau-Ponty, M. Le Visible et L’Invisible. Paris: Gallimard, 1990, p. 176-177.
(32) Caillois, R. “Mimetismo e Psicastenia Legendária”, in Che Vuoi? Psicanálise e Cultura, Porto Alegre, outono de 1986, ano 1, no. 0, p. 60.
(33) Ibid., p. 63.
(34) Ibid., p. 62.
(35) Krauss, R. O Fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili, 2002, p. 184. Krauss nota, ainda, que a máquina fotográfica desempenha o papel de duplo diedro definido por Caillois (Cf. p. 187).
(36) Ibid., p. 62.
(37) Ibid., p. 62-63. Itálicos do autor.
(38) Ibid., p. 63.
(39) Ibidem. Itálicos de Caillois.
(40) Lacan, J. O Seminário Livro 11. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, 104.
(41) Ibid., p. 106.
(42) Ibid., p. 111.
(43) Ibidem.
(44) Cf. a esse respeito Rivera, T. Gesto Analítico, Ato Criador. Duchamp com Lacan. In Coutinho Jorge (org.). A Formação do Analista. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006.
(45) Lacan, J. O Seminário Livro 11. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Op. cit., p. 113.
(46) Lacan, J. “Télévision”, in Autres Écrits, op. cit., p. 537.
(47) Lacan, J. O Seminário Livro 11. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Op. cit.,., p. 111.
(48)“Esse sobrevôo que eu chamo o sujeito...”. Ibid., 95.
(49) Cf. nota 13.
(50) Clark, L. Do Ato. Op. cit., p. 164.
Experimentando as obras
de Lygia Clark
.
Lygia Clark
Belo Horizonte, MG, 1920
Rio de Janeiro, RJ, 1988
"Babá Antropofágica "
1975 - representação fotográfica
O quê?
A fotografia documentando a arte;
a descoberta de identidades no envolvimento com a obra de Lygia Clark;
a expressâo corporal, o desenho e a pintura como formas de conhecer o caržter expressivo do corpo humano;
o dižlogo como forma de ensino/aprendizagem de arte.
Por quê?
O dižlogo e as atividades propostas a partir da experiència com a obra de Lygia Clark, investigando sensaç§es e experimentando o corpo, sâo meios de gerar questionamentos e construir conhecimentos acerca de identidade.
Propiciar a compreensâo da arte e garantir sua incorporaçâo no cotidiano sâo formas de apoiar os processos de construçâo da identidade cultural.
Descobrir quem somos e procurar compreender o modo de ser dos outros sâo os primeiros passos para que possamos interagir com respeito
Para quê?
Para possibilitar ao aluno:
perceber o exercìcio do dižlogo e da atividade de criaçâo como meios de aproximaçâo com a obra de arte;
estudar as relaç§es entre o modo como nos percebemos e a forma como enxergamos os outros, discutindo a identidade de cada um no percurso proposto a partir do contato com a obra de Lygia Clark
conhecer algumas das possibilidades expressivas do corpo, do desenho e da pintura.
Como? (Quando? Onde?)
A fotografia como registro
A relaçâo de Lygia Clark com a fotografia ë diferente das de outros artistas/fot�grafos incluìdos no Material de Apoio Educativo, como Clžudia Andujar, Esko Männikk• ou Seydou Keita. Esta foto de experiència corporal, "Baba antropofžgica"1 (1973), realizada por Lygia Clark, foi uma das vžrias formas que a artista escolheu para documentar seu trabalho, entre as quais se incluem textos e filmagens.
Apesar de ser possìvel fazer uma anžlise dos aspectos formais e simb�licos da linguagem fotogržfica por imagem, ela nâo foi apresentada pela artista para que fosse observada como uma obra de arte, mas como registro de uma experiència coletiva que prop–s como uma forma de arte. A artista coloca-se como pesquisadora, explorando os limites da relaçâo entre arte e pöblico2, envolvendo profundamente as pessoas num processo interativo de criaçâo.
1. "Babá Antropofágica"
Segundo Lygia Clark, "tudo começou a partir de um sonho que passou a me perseguir o tempo inteiro. Eu sonhava que abria a boca e tirava, sem cessar, de dentro dela uma substéncia, e Ç medida que isso ia acontecendo eu sentia que ia perdendo minha substéncia interna, e isso me angustiava muito, principalmente porque nâo parava de perdè-la. Um dia, depois de ter feito as mžscaras sensoriais, me lembrei de construir uma mžscara que possuìsse uma carretilha que fizesse a baba ser engolida. Foi realizada em seguida o que se chamou de 'Baba antropofžgica', em que as pessoas passavam a ter carretëis dentro da boca para expulsar e introjetar a baba. Depois disso s� tive um sonho: ia mais uma vez tirando da boca a tal baba, atë que tudo o que havia saìdo se transformou em um tubo de borracha que eu imediatamente introjetei em minha boca. Entâo eu nunca mais sonhei com isso". "Na fase sensorial de meu trabalho, que denominei 'Nostalgia do corpo', o objeto ainda era um meio indispensžvel entre a sensaçâo e o participante. O homem encontra seu pr�prio corpo por meio de sensaç§es tžteis realizadas em objetos exteriores a si. Depois incorporei o objeto, mas fazendo-o desaparecer. Entretanto, ë o homem que assegura seu pr�prio erotismo. Ele torna-se o objeto de sua pr�pria sensaçâo. O er�tico vivido como 'profano' e a arte como 'sagrada' se fundem em uma experiència önica; trata-se de confundir a arte e a vida."
Lygia Clark : (Belo Horizonte, MG, 1920 - Rio de Janeiro, RJ, 1988): artista com uma produçâo que discute a interaçâo do pöblico com a arte. A partir de sua participaçâo no movimento neoconcreto, desenvolveu obras relacionadas Ç poëtica do corpo e aos aspectos terapèuticos da arte.
2. Arte e público
Segundo Frederico de Moraes, "a sacralizaçâo da arte no interior da cultura ocidental, p�s-renascentista, levou a um distanciamento crescente entre a obra e o pöblico, estabelecendo entre aquela e esse uma relaçâo vertical e autoritžria, consagrada no interdito secular dos museus: 'Pede-se nâo tocar'. Ï evidente que essa proibiçâo vai muito alëm do contato fìsico, do pegar e do apalpar, ë alguma coisa de mais profundo, que revela toda uma concepçâo de funçâo da arte na sociedade. A obra, distanciada de seu autor no tempo e no espaço, tornada objeto de veneraçâo (e, como conseqÆència, de valorizaçâo mercantil), reprime no espectador a verdadeira, isto ë, a profunda satisfaçâo. Com o que perdem os dois, pois a obra verdadeira tem a capacidade de liberar, no espectador, seu instinto criador, e este, por sua vez, com sua pr�pria experiència e sensibilidade, acrescenta Ç obra novos significados. Uma relaçâo autèntica entre obra e espectador faz deste öltimo um co-criador da obra, um companheiro de aventura do artista. (...) A partir dos anos 50, essa questâo da co-autoria passou a ter outro nome: participaçâo do espectador. O artista era o autor, apenas, de uma estrutura inicial, cujo viver ou desabrochar estavam fundamentalmente vinculados Ç vontade de participaçâo lödica do espectador na obra".
Investigando a fotografia
Para iniciar esse processo de interaçâo com a obra da artista, partindo de uma observaçâo inicial da fotografia, sugerimos alguns questionamentos (acrescente os seus):
Quem são estas pessoas?
O que elas estão fazendo?
Por que estão fazendo isto?
O que é esta coisa que está por cima da pessoa deitada?
Por que ela não se levanta?
O que a artista está propondo?
Esta foto deve ser considerada mais como um registro, uma informaçâo sobre uma experiència artìstica, do que propriamente uma obra de arte. Ï fundamental que o professor acrescente, Ç medida que considerar necessžrio, outras informaç§es sobre a proposta de trabalho da artista e seu contexto para aprofundar com o grupo de estudantes os questionamentos das idëias surgidas na percepçâo da obra.
Olhar para dentro
Pedir aos alunos que se sentem de modo confortžvel, fechem os olhos e desliguem-se dos sons e dos estìmulos externos, concentrando a atençâo no mundo interior de cada um, investigando suas sensaç§es, suas emoç§es, seus pensamentos, suas mem�rias, seus desejos...
Logo que abrirem os olhos, pedir que anotem tudo o que perceberam dentro de si na forma de um desenho ou de uma pintura.
Se houver possibilidade de trabalhar com papëis grandes, antes de realizar a atividade anterior pedir que os alunos desenhem em duplas a silhueta de seus corpos em tamanho natural, depois pedir que "olhem para dentro" e que desenhem o que percebem como importante em seu interior dentro das silhuetas de seus corpos.
Conversar com os alunos frente aos resultados de sua pesquisa3 sobre seu mundo interior. Comparar o registro que fizeram de sua vivència com o caržter documental da foto da experiència "Baba antropofžgica", de Lygia Clark, avaliando na discussâo sua compreensâo de que uma imagem pode assumir uma funçâo artìstica ou documental.
3. Pesquisa
Otìlia Arantes comenta que, para o crìtico Mžrio Pedrosa, "a arte moderna se debate, mesmo sem o saber, nos vërtices da informaçâo e da expressâo. (...) Embora afirmando que 'a abordagem fenomenol�gica prossegue vžlida', reconhece que a intensificaçâo da escala perceptiva, dadas as possibilidades abertas pela ciència e pela aparelhagem tëcnica, acarreta em n�s um 'esvaecer fenomenol�gico'. Nâo se pode mais querer preservar a arte unicamente no émbito da expressâo fision–mica quando hž tambëm uma obsessâo quase neur�tica dos artistas mais audaciosos e criativos com a pesquisa".
Fenomenológica: relativo Ç fenomenologia, sistema proposto pelo fil�sofo alemâo Edmund Husserl (1859-1938), que busca a volta "Çs coisas mesmas", procurando reencontrar a verdade nos dados originžrios da experiència.
Investigando a obra de Lygia
As très obras de Lygia Clark descritas a seguir podem ser recriadas em classe pelo professor e seus alunos, adaptadas aos recursos materiais disponìveis, para a realizaçâo de algumas das experièncias sensoriais4 sugeridas pela artista em sua obra:
1. "Livro sensorial" (1966)
"Livro composto por folhas feitas com sacos de plžstico transparente, contendo em seu interior diferentes materiais, visando proporcionar uma leitura sensorial tžtica diversificada. As pžginas sâo recheadas de elementos destinados Ç leitura tžtil, tais como conchas, pedacinhos de tubo plžstico, lâ de aço, pedras alternadas com pžginas de alumìnio rìgido."
2. "Luvas sensoriais" (1968)
"Luvas feitas de vžrios materiais e tamanhos, usadas pelos participantes, que seguram bolas de dimens§es e texturas diferentes, levando-os a redescoberta do tato Ç medida que repetem a experiència sem a luva."
3. "Cabeça Coletiva" (1975)
"Uma estrutura com base de madeira e de armaçâo de arame forrada com tecido de malha forma uma grande cabeça. Seu interior compunha-se de pequenos compartimentos que Lygia Clark preenchia com os mais diversos materiais. Na base havia um orifìcio por onde o participante colocava a pr�pria cabeça e apoiava a grande cabeça em seu pr�prio ombro.
Essa proposta foi, inicialmente, chamada 'Cabeça cosmog–nica' pelo crìtico Mžrio Pedrosa. A cabeça de enorme dimensâo foi construìda no apartamento da artista, que era constantemente visitado por seus alunos, que foram tambëm acrescentando novos objetos nos compartimentos da cabeça: frutas, cartas de amor, biscoitos, sapatos, fitas de pano, bilhetes etc. A cabeça foi aos poucos se tornando um dep�sito de coisas dìspares. Surgiu entâo seu nome definitivo: 'Cabeça coletiva'.
Posteriormente foi levada para a rua e foi 'servida' pelos participantes que, grudando-se em torno dela, retiraram as coisas guardadas em seu interior e comiam e partilhavam os alimentos. A experiència foi vivenciada com crianças e adultos que passavam ocasionalmente pela rua."
4. Na visita à Bienal
No espaço dedicado Ç obra de Lygia Clark na XXIV Bienal, o professor encontrarž diversas obras/experièncias criadas pela artista. Caso ainda nâo se sinta seguro para construir estas propostas em sua escola, procure participar desta experiència junto com seus alunos. Experimentž-las pode ser uma �tima forma de imaginar novas maneiras de criar percursos educativos para conhecer arte dentro de uma perspectiva que integra tâo profundamente arte e vida5.
4. Experiências sensoriais
Segundo Feldenkrais, "o importante na aprendizagem nâo ë o que vocè faz, mas como vocè faz. (...) As pessoas que nâo possuem livre escolha nâo respeitam a si mesmas e sentem-se inferiores Çs outras pessoas e a si mesmas! Agora, para se ter livre escolha, ë preciso perceber uma diferença significativa. (...) Aumentar a sensibilidade. E, desde que a sensibilidade aumenta somente quando o estìmulo ë diminuìdo, ë necessžrio, entâo, reduzir o esforço. (...) Qualquer coisa que se aprende com dificuldade, com dor e esforço torna-se inötil; vocès nunca aproveitarâo essa aprendizagem na vida. Ï por isso que as pessoas vâo Ç escola e nâo se lembram de nada do que aprenderam. Pois aprenderam forçadas, Çs vezes com violència, e de maneiras em que era necessžrio fazer um grande esforço; muitas vezes sentiam-se envergonhadas e com grande esforço competiam umas com as outras, Çs vezes atë decorando. Isso nâo ë aprendizagem. Ï exercìcio. Nessas condiç§es, s� podem fazer uma önica coisa: repetir o que estâo fazendo atë satisfazer o professor. (...) Do contržrio nâo passam. Repetiç§es e exercìcios sâo coisas mecénicas, nunca se aprende coisa alguma. O melhor que fazem ë familiarizar-se com uma önica maneira de reagir. Deste modo, perde-se a capacidade de melhorar".
5. Arte e Vida
Lygia Clark: "Agora que o artista verdadeiramente perdeu na sociedade seu papel pioneiro, ele ë cada vez mais respeitado pelo organismo social em decomposiçâo. No momento em que o artista ë cada vez mais digerido por essa sociedade em dissoluçâo, lhe resta, na medida de seus meios, tentar inocular uma nova maneira de viver. Mesmo no instante em que o artista digere o objeto, ele ë digerido pela sociedade, que jž lhe achou um tìtulo e uma ocupaçâo burocržtica: o engenheiro do �cio do futuro... Atividade que nada afeta o equilìbrio das estruturas sociais. A önica maneira para o artista escapar da recuperaçâo ë tentar desencadear uma criatividade geral, sem nenhum limite psicol�gico ou social. Sua criatividade se exprimirž no vivido". Segundo Ronaldo Brito, "Duchamp arrematava: o ato artìstico ë diverso da obra de arte, ë irredutìvel ao vago e tantas vezes retr�grado papel social que a instituiçâo lhe imp§e cumprir. A arte serž atë a anti-arte, jamais porëm coincidirâo gesto-artìstico e obra-em-museu. A arte ë, isto sim, uma atividade sem fronteiras, transgressora dos c�digos mentais vigentes, vinculada Ç experiència do 'mundo da vida'. (...) O efeito de um trabalho de arte, quando aparece na plena potència, rep§e em questâo o real. Muito mais do que uma sensibilizaçâo, um sentimento do mundo, ë a repotencializaçâo poëtica da existència. E essa repotencializaçâo nâo cabe no museu, na emoçâo estëtica, no discurso crìtico".
Duchamp: (Marcel Duchamp, Blainville, França, 1887 - id., 1968): influenciou profundamente a arte contemporénea com seus "Readymades", objetos "encontrados prontos". Expostos em museus e galerias, foram interpretados como crìticas ir–nicas ao circuito artìstico, Ç noçâo de autoria da obra de arte e Ç autonomia da arte na sociedade industrial.
Diálogo
Pedir aos alunos para descrever as sensaç§es que tiveram com cada obra de Lygia Clark (recriadas na escola ou visitadas na Bienal). Conversar em grupo sobre as experièncias vividas individualmente em cada situaçâo ë um modo de criar condiç§es para que os estudantes percebam o corpo como um organismo vivo em relaçâo ao espaço que o cerca. Ï importante esclarecer que ë fundamental que cada um procure manter o clima de respeito Ç forma como o outro estž se expondo, assegurando o direito ao mesmo respeito no momento que se expor.
Ressaltamos que, para desenvolver um trabalho de expressâo corporal6 conjunto com as demais atividades de artes visuais, orientando e avaliando o trabalho dos alunos, ë adequado que o pr�prio professor tenha desenvolvido atividades nessa žrea como parte de sua formaçâo, ou que procure a orientaçâo de um colega com essa experiència.
Ao criar condiç§es para um envolvimento sensìvel com a obra de Lygia Clark (ou sua recriaçâo), temos uma referència para nos aproximarmos dos nìveis mais profundos de nossa pr�pria identidade. O contato com as criaç§es desta artista, que destaca em sua obra a interaçâo do ser humano com a arte e com a vida, permite investigarmos os enigmas da individualidade.
Esse reconhecimento se dž pelas relaç§es de aproximaçâo ou estranhamento que ocorrem na interaçâo com a obra e durante o dižlogo com o grupo a respeito de suas sensaç§es e seus significados, pelos confrontos, pelos questionamentos e pelas comparaç§es em relaçâo ao outro.
Para transformar a aula num ambiente propìcio ao dižlogo, o professor precisa abdicar da postura tradicional de autoridade e assumir o papel de mediador e de orientador do aprendizado dos alunos. Ï necessžrio coordenar a discussâo deixando claro para os alunos que o principal objetivo ë aprender a dialogar sobre arte, nâo o "acertar" ou "errar" uma questâo especìfica, de modo a estimular sua participaçâo sem quaisquer constrangimentos.
Cada obra de arte comporta uma infinidade de percepç§es e possibilidades de compreensâo; as possibilidades de leitura serâo ampliadas a partir de suas pr�prias dövidas e necessidades reflexivas e das manifestas por seus alunos durante a realizaçâo deste percurso.
6. Expressão Corporal
Segundo Rector e Trinta, "nossa aparència fìsica ë culturalmente programada. (...) Ï aprendida, pois nâo nascemos com ela. Conformamos e adaptamos o corpo segundo padr§es sociais estabelecidos e adotados por convençâo. Aprendemos a nos movimentar, a nos posicionar, formal e informalmente, de acordo com circunsténcias socialmente determinadas. (...) Pessoas que convivem durante longos perìodos passam a se parecer. (...) Trata-se de um processo de identificaçâo. (...) Nosso corpo ë uma mensagem, que anuncia ou denuncia o que somos e pensamos. (...) Essa comunicaçâo confunde-se com a pr�pria vida. (...) A comunicaçâo serve, em primeiro lugar, Ç sobrevivència, individual e coletiva; em segundo, Çs extensas redes de troca social, pelas quais se forma e se transforma a pr�pria realidade. (...) A comunicaçâo sup§e a alteridade, senâo a pluralidade. Comunicar ë atuar sobre a sensibilidade de alguëm, buscando mobilizž-lo, convencè-lo ou persuadi-lo. (...) A 'construçâo' possìvel de uma 'imagem social' requer consciència e controle de gestos e posturas. E a expressâo gestual serve tanto a uma intençâo cognitiva, expressiva ou descritiva, quanto a referèncias de ordem afetiva".
Voltando a olhar para dentro
Ap�s a realizaçâo dessas experièncias com as propostas de Lygia Clark, procure realizar novamente o exercìcio proposto em "Olhar para dentro".
Verificar as diferenças nos desenhos e nas conversas do grupo sobre eles permite acompanhar modificaç§es no processo de construçâo da identidade corporal7 dos alunos.
7. Identidade corporal
Edith Derdyk diz que "o corpo, com seus impulsos e reaç§es, ë a manifestaçâo de uma vontade. O corpo ë nosso querer no mundo, tornando possìvel a percepçâo de uma identidade, hist�ria önica do indivìduo. A noçâo do si-mesmo ë assentada na experiència da vida num corpo. (...) O corpo humano pode ser considerado como um instrumento de formaçâo e de modificaçâo do mundo. (...) Conhecer e transformar nosso instrumento ë conhecer e transformar o mundo. O corpo potencializa a materializaçâo de nossos quereres no mundo, expressando atë involuntariamente a necessidade de concretizaçâo de projetos. A presença corporal confirma o ser, o estar e o fazer do homem no mundo. (...) Sâo milhares as maneiras de representar a figura humana, as quais, provavelmente, estiveram associadas Çs condiç§es e circunsténcias de uma certa ëpoca, bem como interligadas Ç relaçâo que o homem mantëm com seu pr�prio corpo: reflexos de uma determinada visâo do mundo. Cada ëpoca desenha sua figura, sua imagem, sua persona cultural. (...) Inclusive as vžrias formas e posturas corporais que os pr�prios artistas assumiram ao desenhar refletem toda uma maneira de estar no mundo".
Visão de mundo: Paulo Freire enfatiza que "o educador deve considerar essa 'leitura de mundo' inicial que o aluno traz consigo, ou melhor, em si. Tais conhecimentos exprimem o que poderìamos chamar de sua identidade cultural. Ele forjou-a no contexto de seu lar, de seu bairro, de sua cidade, marcando-a fortemente com sua origem social".
4. Sugest§es de continuidade
As experièncias vividas com as obras de Lygia Clark podem ser utilizadas para falar do estranhamento em relaçâo Çs transformaç§es do corpo sentidas pelo adolescente. Essa ë uma excelente entrada para as discuss§es acerca de corpo, saöde, sexualidade e identidade nessa idade (o desejo de afirmaçâo individual, simulténeo ao de pertencer a um grupo). Sugerimos propor esta tarefa em conjunto com o professor de Biologia.
Investigar o tratamento dado por outros artistas ao corpo humano, em diversos momentos da Hist�ria, procurando afinidades e contrastes com a abordagem de Lygia Clark. Sugerimos como exemplos os artistas Hëlio Oiticica e Giacometti.
Sugerimos procurar o professor de Hist�ria e propor uma atividade conjunta relacionando o contexto hist�rico-filos�fico da ëpoca em que Lygia Clark criou essa proposta com os aspectos de seu trabalho levantados na experiència com a obra e no dižlogo8 com os alunos. Como esses aspectos se refletem em outros artistas contemporéneos9 a ela?
A reproduçâo da fotografia da "Baba antropofžgica", de Lygia Clark, documentaçâo de sua proposta artìstica, remete Ç realizaçâo de outras atividades sobre a percepçâo dos limites entre as representaç§es bidimensionais e realidade. Essa questâo pode ser explorada a partir de: fotos de um local que os alunos conheçam pessoalmente; proposta de desenho de observaçâo a partir de elementos tridimensionais; comparaçâo entre a planta de um edifìcio e a construçâo real (pode ser a pr�pria escola) ou entre um objeto produzido industrialmente e seu projeto (desenho tëcnico).
8. Diálogo
J. Gaarder comenta que "o ponto central de toda a atuaçâo de S�crates como fil�sofo estava no fato de que ele nâo queria propriamente ensinar as pessoas. Para tanto, em suas conversas, S�crates dava a impressâo de ele pr�prio querer aprender com seu interlocutor. Ao 'ensinar', ele nâo assumia a posiçâo de um professor tradicional. Ao contržrio, ele dialogava, discutia. (...) O pr�prio S�crates costumava comparar a atividade que exercia com a de uma parteira. Nâo ë a parteira quem dž Ç luz o bebè. Ela s� fica por perto para ajudar durante o parto. (...) Mas S�crates nâo teria se tornado um fil�sofo famoso se apenas tivesse prestado atençâo ao que os outros diziam. (...) Geralmente, no começo de uma conversa, S�crates fazia perguntas, como se nâo soubesse de nada. Durante a conversa, freqÆentemente conseguia levar seu interlocutor a ver os pontos fracos de suas pr�prias reflex§es, (...) reconhecendo o que estava certo e o que estava errado". A obra do educador Paulo Freire ë uma excelente referència sobre a incorporaçâo do dižlogo como mëtodo de ensino dentro da realidade da escola brasileira.
Sócrates: (Atenas, Grëcia, 470 a.C. - 399 a.C.): fil�sofo grego criador da maièutica, mëtodo indutivo baseado no dižlogo, com que ajudava seus discìpulos a "parir" idëias e a apreciar a natureza e os resultados de seus atos, desenvolvendo uma consciència responsžvel que lhes permita agir corretamente.
9. Artistas contemporâneos
Guy Brett comenta em 1969 que: "O que realmente diferencia os artistas brasileiros mais originais, como Lygia Clark e Hëlio Oiticica, ë o interesse deles pela pessoa humana em sentido completo. Lygia Clark tem falado de "ser consciente de novo sobre os gestos e atitudes na vida cotidiana".(...)Suas "obras" sâo apenas instrumentos, que, em contato direto com uma pessoa, tornam-se um meio de focar suas sensaç§es, de sentir-se vivo enquanto as vivencia. Lygia escreveu em 1965: "Qual ë, entâo, o papel do artista? Dar ao participante o objeto, que em si mesmo nâo tem importéncia, e que s� virž a ter na medida em que o participante agir. Ï como um ovo que s� revela a sua substéncia quando o abrimos."Hëlio Oiticica diz em 1967: "Para mim, na minha evoluçâo, o objeto foi uma passagem para experièncias cada vez mais comprometidas com o comportamento individual de cada participador; faço questâo de afirmar que nâo hž procura , aqui, de um "novo condicionamento" para o participador, mas sim a derrubada de todo o condicionamento para a procura da liberdade individual, atravës de proposiç§es cada vez mais abertas visando fazer com que cada um encontre em si mesmo, pela disponibilidade, pelo improviso, sua liberdade interior, a pista para o estado criador - seria o que Mžrio Pedrosa definiu como "exercìcio experimental da liberdade".
Hélio Oiticica: (Rio de Janeiro, RJ, 1937 - 1980): artista ligado inicialmente ao movimento neoconcreto, dentro da temžtica do corpo indicamos seus "Parangolës", obras para serem "vestidas" pelo pöblico, incluindo estìmulos sensoriais variados como cores, sons e cheiros. Veja o Material de Apoio "Aç§es antropofžgicas da cor".
Glossžrio
Giacometti (Alberto Giacometti, Stampa, Suìça, 1901 - Paris, França, 1966): o artista declara: "Nas ruas, nos cafës, as pessoas me assombram e me atraem mais que qualquer pintura ou escultura. A todo momento os seres humanos se juntam e se separam, e logo se aproximam para tentarem se reunir novamente. Assim, formam e transformam sem cessar composiç§es vivas de incrìvel complexidade. A totalidade desta vida ë o que quero captar".. Bibliografia
BERND, Zilá. "Racismo e anti-racismo". São Paulo: Moderna, 1994.
GARCIA, Regina Leite. Currículo emancipatório e multiculturalismo: reflexões de viagem. in: SILVA, Tomaz Tadeu da e MOREIRA, Antonio Flávio (Orgs.). "Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos
e culturais". Petrópolis: Vozes, 1995.
KOSSOI, Boris e CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. "O olhar europeu: o negro na iconografia brasileira do século XIX".
São Paulo: Edusp, 1994.
Pinacoteca do Estado de São Paulo. "Seydou Keita". São Paulo, 1997. (Encarte que acompanha o catálogo.)
RIBEIRO, Darcy. "O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil". São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Secretaria de Educação Fundamental. "Parâmetros curriculares nacionais: arte para o ensino fundamental". Brasília: Ministério da Educação/SEF, 1997.
Por um estado de arte: a atualidade de Suely Rolnik
texto linkado da fundação bienal - são paulo.
Sâo Paulo, domingo, 15 de maio de 19941. Deitada no châo, olhos vendados, alvoroço de corpos an–nimos agitando-se em torno de mim; nâo sei o que pode vir a se passar. Perda total de referèncias, apreensâo, desassossego. Estou entregue. Pedaços de corpos sem imagem destacam-se, ganham autonomia e começam a agir sobre mim: bocas an–nimas abrigam carretëis de mžquina de costura, cujas linhas lambuzadas de saliva sâo ruidosamente desenroladas por mâos igualmente an–nimas, para em seguida depositž-las sobre meu corpo. Coberta pouco a pouco dos pës Ç cabeça por um emaranhado de linhas, composiçâo improvisada de bocas e mâos que me cercam, vou perdendo o medo de diluir a imagem de meu corpo, diluir meu rosto, minha forma, me diluir: começo a ser este emaranhado-baba. O som dos carretëis girando nas bocas parou. As mâos agora se embrenham nesta espëcie de molde ömido e quente que me envolve para retirž-lo de mim; umas, mais nervosas, arrancam tufos; outras erguem fios com a ponta dos dedos como se temessem esgarçž-los-e assim vai atë que nada mais reste. Meus olhos sâo desvendados. Volto ao mundo visìvel. No fluxo do emaranhado-baba plasmou-se um novo corpo, um novo rosto, um novo eu.
Estou atordoada. O que ë isso que me aconteceu? Sinto-me convocada a enfrentar o enigma. Procuro pistas nos textos da pr�pria Lygia, que sempre me soaram como os mais precisos para dizer o indizìvel de sua obra. Embora eu nâo disponha neste momento de acesso a seus dižrios2, posso contar com seus textos publicados e alguns inëditos, suas entrevistas, sua correspondència. Detenho-me especialmente na fase que se inicia logo ap�s o Trepante (1964), öltimo de seus famosos Bichos-aquele que, segundo Lygia, levou um chute de Mžrio Pedrosa3 quando ele o viu pela primeira vez, acompanhado em seguida de um comentžrio entusiasmado: "atë que enfim se pode chutar uma obra de arte".4 A partir do momento em que este chute se torna possìvel, concretiza-se uma virada na obra de Lygia que jž vinha se anunciando. A nova fase inaugura-se com o Caminhando (1964) e encerra-se com as sess§es dos Objetos relacionais, obra que ela realiza de 1976 a 1981, e bem mais esporadicamente atë 1984. Ï este perìodo que me interessa pesquisar, pois ë aì que Lygia cria a "obra" que me aconteceu, Ç qual deu o nome Baba antropofžgica (1973). Sâo os vinte e quatro öltimos anos de sua produçâo, quando se torna (deliberadamente) invižvel expor seus objetos isolados em museus, galerias, salas ou sal§es. Que sentido teria expor carretëis, por exemplo, sem esta experiència que descrevi?
Chama minha atençâo a repetiçâo insistente de algumas palavras e express§es, verdadeiros ritornelos. Decido entâo tomž-los como linhas de minha investigaçâo. Começo por um deles que menciona o corpo, jž que foi aì que algo de inquietante se passou comigo: "mem�ria do corpo". De que corpo e de que mem�ria Lygia estaria falando?
Apelo para a mem�ria das sensaç§es que vivi na Baba antropofžgica. Descubro que o corpo em que fui lançada e do qual Lygia tanto fala nâo ë o corpo orgénico, nem a imagem do corpo, nem o inv�lucro de uma suposta interioridade imaginžria, que constituiria a unidade de meu eu. E, mais ainda, sâo exatamente estes corpos que foram se desmanchando em mim, diluindo-se na mistura das babas. O corpo vivido nesta experiència estž para alëm deles todos, embora paradoxalmente os inclua: ë o corpo do emaranhado-fluxos/baba em que me desfiz e me refiz.
Penso no "corpo sem �rgâos", expressâo de Antonin Artaud retomada e expandida por Gilles Deleuze e Fëlix Guattari, no mesmo momento em que Lygia fazia sua Baba antropofžgica. O corpo sem �rgâos ë esta matëria aformal de fluxos/baba, que experimentei num plano totalmente distinto daquele onde se delineia minha forma, tanto objetiva quanto subjetiva. Eu disse matëria "aformal" e nâo "informe", porque o que vivi ali nâo foi simplesmente uma ausència ou indefiniçâo de minha forma, mas sim um alëm da forma. Um plano habitado por uma fervilhante agitaçâo de fluxos de saliva, de linhas, de bocas, de mâos, em movimentos de atraçâo e repulsa, produzindo constelaç§es-uma pletora de vida em que um feixe desconhecido de sensaç§es foi germinando, impossìvel de ser expresso na forma em que eu me reconhecia. Foi quando me estranhei: algo em mim deixara de fazer sentido. S� fui me apaziguar quando senti ganhando consistència um novo corpo, um novo "eu", encarnaçâo daquelas sensaç§es produzidas pela mistura dos fluxos/baba.
Vislumbro então que o corpo sem órgãos dos fluxos/baba é uma espécie de manancial de mundos·modos de existência, eus, "corpos, como acontecimentos, como aquilo que sempre está por aparecer, por ser produzido".5 É um fora de mim, mas que curiosamente me habita e ainda por cima me faz diferir de mim mesma·como diz Lygia: "o dentro é o fora". Este paradoxo me leva a uma nova pergunta: se não é dentro de mim, onde é que tal fora me habita?
Lembro-me de um comentário de Lygia sobre uma obra do período que estou investigando: "O homem quando põe essas máscaras vira um bicho autêntico, pois a máscara é um apêndice dele."6 Encontro uma pista: o fora é o corpo sem órgãos do autêntico bicho·um além de mim enquanto forma dada, com seu contorno, seu dentro, sua estrutura, sua psicologia. O fora é o vivo não-humano que me habita: matéria feita de babas misturando-se ao infinito, produzindo dobras e mais dobras, cujos contornos circunscrevem dentros. E os dentros vão sendo deglutidos no emaranhado das babas, bicho antropofágico que os devora tornando-os contingentes e finitos. Cada dentro é uma dobra do fora, uma dobra do autêntico bicho.
A associação com os Bichos em suas múltiplas dobras é imediata. Mas também com o Caminhando que vem logo em seguida, inaugurando esta última fase da obra de Lygia: uma iniciação do espectador ao dobrar do fora, formando dentros efêmeros que se desdobram para diluírem-se novamente no fora. Palavras da própria Lygia: "o caminhando permite. . . a transformação de uma virtualidade em um empreendimento concreto".7 Uma virtualidade produzida no fora que se concretizará na criação de uma nova forma.
Volto à Baba antropofágica: é deste fora que foi se produzindo um novo dentro de mim. E dá para imaginar que se repetisse esta experiência em outros contextos, constituídos por outros fluxos, outras misturas, outros dentros de mim iriam se produzir.
Se este é o corpo que habitei na Baba, em que consiste a memória deste corpo? Que espécie de memória tal experiência ativou em mim?
É óbvio que o que se ativou não foi uma memória cronológica, depósito/arquivo de uma seqüência biográfica que minha consciência teria acessado; tampouco um esconderijo de representações reprimidas deste passado.
De novo é Lygia quem responde. O que a Baba ativou foi a memória do "arcaico", mais um de seus ritornelos: o tal bicho·o não-humano no homem e seus afetos·paradoxalmente sempre contemporâneo. Memória do corpo dos emaranhados-baba, campo de experimentação de uma cronogênese: engendramento de linhas de tempo espacializando-se em novos mundos. Memória prospectiva, acessada por reativação (do bicho) e não por regressão (ao passado humano e seus conteúdos recalcados).
Aí uma outra pergunta vem impor-se a mim, a última que tenho de enfrentar para apreender minimamente o que me aconteceu naquele domingo: o que Lygia pretende inventando objetos cuja visada é acessar a memória do corpo?
1. O relato que se segue descreve a experiència que fiz da obra de Lygia Clark Baba antropofžgica, no contexto de um grupo de trabalho que visava inicialmente Ç preparaçâo da retrospectiva de sua obra na XXII Bienal Internacional de Sâo Paulo.
2. Lygia Clark escreveu dois dižrios: um dižrio clìnico (notas das "sess§es" com os Objetos relacionais, sua öltima obra) e um dižrio pessoal (très volumes de textos que vâo de 1955 a 1973). Pesquisei este material em duas ocasi§es. Uma primeira vez, em 1978, em resposta a um pedido de Lygia: tomar seu öltimo trabalho como tema de minha dissertaçâo (Mëmoire du corps, defendida na Universidade de Paris VII), bem como ajudž-la na elaboraçâo do texto "Objeto relacional" para o livro que a Funarte consagrou Ç sua obra. Voltei a trabalhar nos dižrios para um projeto de ediçâo de seus textos que desenvolvemos juntas em 1987. Este projeto foi interrompido por sua morte, assim como o acesso a seus dižrios.
3. Mžrio Pedrosa ë uma das figuras mais importantes da hist�ria da crìtica de arte no Brasil. Responsžvel pela atualizaçâo da arte moderna e defensor das vanguardas, foi um intërprete privilegiado da obra de Lygia Clark.
4. Extraìdo de um trecho do dižrio pessoal de Lygia Clark, que comp§e a capa do livro Artes de Sonia Lins, sua irmâ (Nova Fronteira, 1995).
5. Extraído da fala de Carlos Bosualdo numa das mesas-redondas promovidas pela XXII Bienal Internacional de São Paulo, em 14.10.1994.
6. Carta a Hélio Oiticica de 14.11.68, Lygia Clark e Hélio Oiticica, Rio de Janeiro: Funarte, 1987.
7. "1964: caminhando", Lygia Clark, col. Arte Brasileira Contemporânea, Rio de Janeiro: Funarte, 1980, p.25.
Se a memória a ser acessada é a cronogenética, a função dos objetos de Lygia não é a sensibilização ou a liberação catártica do corpo próprio como fonte de prazer, nem a expressão ou a constituição de uma imagem do corpo como fonte de unidade psíquica, nem o resgate das tais representações reprimidas que se encontrariam num arquivo secreto. Ao contrário, a função destes objetos é favorecer a exposição da subjetividade ao além do humano no homem: o autêntico bicho (o vivo).
É a própria Lygia quem afirma que o ritual que convoca esta memória não visa "buscar uma forma a ser encontrada seja no passado, seja no futuro, mas a vivência experimental do particípio presente da evolução incessante das formas. Ritual que servirá de ponte para atravessar da terra pseudo-firme de sua alienação para as águas instáveis e tão inesgotáveis de sua liberdade de ação e do †precário como novo conceito de existênciaË".8 Ritual que devolve ao "pulmão cósmico" (outro ritornelo de Lygia) a potência de respirar os ares do fora.
Lygia não quer apenas abrir o acesso ao informe (o negativo da forma, sua ausência), nem à capacidade de mudar de forma (metamorfose), propostas bastante comuns na geração de artistas à qual pertence, geralmente tomadas como um valor em si. O que ela quer é criar condições para conquistar ou reconquistar na subjetividade um certo estado no qual seja possível suportar a contingência das formas, desgrudar de um dentro absolutizado vivido como identidade, navegar nas águas instáveis do corpo aformal e adquirir a liberdade de fazer outras dobras, toda vez que um novo feixe de sensações no bicho assim o exigir. É como resposta a esta exigência que mudar de forma ganha sentido e valor, impondo-se como necessário para a aventura vital.
Lygia chamou isso de "atingir o singular estado de arte sem arte": último de seus ritornelos que evocarei, pois ele define a experiência que me interessa problematizar aqui. Uma pergunta logo se impõe: por que "sem arte"? Este é um detalhe essencial: para Lygia experimentar o estado de arte·corporificar um novo feixe de sensações, singular por definição·não se dá somente na criação de um assim chamado "objeto de arte" mas também na criação da existência objetiva e/ou subjetiva. O que Lygia quer é resgatar a vida em sua potência criadora, seja qual for o terreno onde se exerça tal potência.
Atingir o estado de arte na subjetividade do próprio artista não tem nada de novo, pois é de dentro deste estado que o artista cria. Lygia sempre viveu verdadeiras convulsões durante a gestação de cada fase de sua obra. Suas turbulências não eram um mero detalhe biográfico pitoresco, peculiaridade de sua "estrutura psicológica", mas sim parte de seu processo de criação, no qual ganhava corpo uma proposta ao mesmo tempo artística e existencial.
Atingi-lo na obra, sacudindo sua reificação no objeto·reificação que encontra poderosa sustentação no mercado de arte·é um passo sem dúvida importante, mas se fosse só esta a questão de Lygia não constituiria novidade alguma em sua época.
Penso que a principal visada de Lygia está na subjetividade do espectador: é aí que ela quis atingir o que chamou de estado de arte·sacudir a posição de espectador, desreificá-la radicalmente. Isso vai muito além da simples proposta de participação, comum em sua geração, redutível a um democratismo9 politicamente correto.
8. "1966: Nós recusamos. . .", Lygia Clark, p30.
9. cf. Paulo Sérgio Duarte, "Depoimento a Glória Ferreira", Lygia Clark e Hélio Oiticica, Rio de Janeiro: Funarte/Inape, 1987.
(continuaçâo)
Aqui se encontram a originalidade e a força maior da obra de Lygia. É isto que a fez se deslocar paulatinamente do público de museus e galerias, por demais reificado em sua identidade de espectador, para ir buscar seus "espectadores" entre jovens estudantes da Sorbonne pós-68, depois entre transeuntes anônimos nas ruas de Paris e, no final, um a um, de preferência borderlines, no contexto daquilo que ela própria chamou de "consultório experimental", instalado em seu apartamento na rua Prado Junior de Copacabana. O acesso do espectador aos objetos depende agora de sua entrega a um processo de iniciação: experimentar o estado de arte. Como escreve Guy Brett "a exclusão de Lygia de uma audiência não seria de fato um modo paradoxal de procurar a †audiência criativaË?"10
O que Lygia busca provocar no espectador pode confundir-se com propostas contraculturais que lhe são contemporâneas: liberar o corpo; desenvolver a criatividade·seja usando os objetos ludicamente como num playground, seja encarnando o clichê do artista que haveria em cada um, Belas (Artes) Adormecidas que se podem e devem despertar. Não é nada disso o que Lygia busca: de espectador em espectador o que ela pretende é que se possa fazer da existência uma obra de arte.
É verdade que como proposta estética isso não tem nada de novo; se poderia dizer que ela acompanha a arte moderna desde o início. Mas Lygia vai mais longe: ela quer é a desreificação da existência individual e coletiva, a descoagulação das formas, a conquista de uma fluidez nos processos de subjetivação·um plasmar-se, como ela diz, deixar-se descosturar e costurar11 pelo fervilhar do trabalho subterrâneo das forças/fluxos de nosso bicho, germinação que se opera em silêncio e que pede um corpo que venha encarná-la, um corpo de pensamento, de arte, de existência, etc. Lygia nos propõe um modo antropofágico de subjetivação: o bicho devorando o homem, outro homem nascendo desta devoração e assim ao infinito.
É também verdade que tampouco é nova a proposta de rasgar as figuras para deixar entrever as forças em ação, esta se formula junto com a modernidade na arte e já com Cézanne atinge seu mais alto grau de refinamento. Mas cada artista tem um procedimento próprio para fazê-lo concretamente. O que é singular no método de Lygia é atingi-lo no corpo do espectador: colocá-lo on-line com as forças, rente à vida; lançá-lo no devir.
Para chegar a isso Lygia teve de ir apurando o objeto até um quase-nada. Isso poderia ser entendido como um "não-objeto", conceito forjado por Malevitch no começo do século, em voga nos anos sessenta. Foi assim que Ferreira Gullar pensou os Bichos, mas já em relação aos Bichos Lygia discordou totalmente. Há um "quase" que resta, e este quase é o que de essencial no objeto mobiliza o que descrevi por meio da Baba·aquilo que opera, no corpo do espectador, uma experiência de desestabilização de sua subjetividade, permitindo-lhe viver a forma no momento de seu naufrágio, momento que é também o de uma germinação. Lygia quis e conseguiu reduzir a mediação do objeto ao mínimo necessário, o quase-nada que promove este efeito. Assim são seus Objetos relacionais, sua última obra.
Produzir este efeito é, a meu ver, a marca mais significativa do trabalho de Lygia e não apenas no período pós-Bichos: o que acontece com esta marca a partir de então é que ela se radicaliza, ganha maior visibilidade, revelando-se sua presença da primeira à última obra de Lygia. Como toda marca da memória de nosso corpo bicho de fluxos/baba ela é eterna, sempre virtual, podendo ser reativada a qualquer momento. Só tem sentido trazer Lygia de volta se for para reativar esta sua marca, reatualizar sua potência de promover a entrega da subjetividade ao estado de arte de modo a contaminar a cultura contemporânea: uma prospectiva que tal marca venha a desencadear e não uma retrospectiva de suas formalizações.
Este é o desafio que se coloca para qualquer tentativa de expor a arte de Lygia Clark·sobretudo quando se pretende incluir seus objetos pós-virada de 64 ousando enfrentar seu mistério, o que é indispensável para a inteligibilidade de sua obra como um todo. Como reativar hoje e num ambiente de museu ou galeria sua força de proliferação? Como fazer emergir em cada "visitante" a voz disruptora do bicho que Lygia nos legou? O desafio por enquanto permanece em aberto. . .
10. "Lygia Clark. The borderline between art and life", Third text, n. 1 (1987), Londres, p.94.
11. "Objeto relacional", Lygia Clark, p.49“50.a
link a ser desbbravado?
http://lygiaclark.multiply.com/
quinta-feira, 10 de julho de 2008
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