A chave da dança
A professora e coreógrafa Tatiana da Rosa escreve sobre Merce Cunningham, um dos gigantes da dança do século 20, que morreu aos 90 anos, em Nova York
Merce Cunningham, coreógrafo e bailarino norte-americano que mudou o curso da dança, da encenação e da arte como um todo no século 20, morreu em Nova York, no domingo, aos 90 anos. Encontrava-se ainda em plena atividade.
A morte de um artista traz a oportunidade de revisitar sua obra. Com a perda de Pina Bausch, Cunningham e Michael Jackson no período de apenas um mês, bailarinos e coreógrafos têm se confrontado com a reavaliação de seus pertencimentos e de sua capacidade de reinventar legados tão profundos (mesmo que no caso do astro pop isso ocorra no mais das vezes como mera concessão).
Ainda é preciso construir a visibilidade de Cunningham fora do campo da dança, mostrar que ele não é só um dos grandes da dança, mas das artes. Ao lado de John Cage, com quem também dividiu a vida e a obra, Cunningham plasmou muitas das principais possibilidades ainda em voga na produção contemporânea.
Embebido no estudo do zen-budismo e herdeiro consciente da tradição moderna tocada pelo dadaísmo e por Duchamp, a Cage interessava investigar a natureza do som e o quanto o limite entre a música e o ruído é dado pela percepção. As decorrências disso para o pensamento do corpo em cena, ao vivo, em performance, encontram-se no trabalho de Cunningham. O encontro com Cage nos anos 40 assinala também o fim do seu trabalho como bailarino de Martha Graham, uma das mestras da dança moderna, de marca fortemente expressionista. A grande contribuição de Cunningham foi propor que o movimento não precisa significar nada além dele mesmo, para então investigar seus limites, como Cage fez com o som. Se o que Graham e seus contemporâneos queriam era trazer a dança para a vida contemporânea, carregando-a de traços humanos, Cunningham logrou soluções que escapam de uma relação temática e ilustrativa para essa demanda. Ao construir obras em que o movimento não reivindica significado nem utilidade, Cunningham parece, à primeira vista, propor um afastamento da vida, uma entrada num formalismo esvaziado.
Mas isso mostra apenas que o caminho escolhido por Cunningham foi rigoroso e corajoso. Para plasmar esse movimento que vale por si mesmo, ele aprofundou os procedimentos do acaso na construção da obra, buscando dar aos bailarinos oportunidades de não imprimir inflexões expressivas no dançar, a se manterem na atualidade do movimento. Seu vocabulário é uma espécie de combinação direta e justaposta entre passos oriundos de seus estudos anteriores, o ballet e a dança moderna de Graham. Constrói (e ainda é necessário falar sobre ele no presente) suas sequências determinando movimentos propositadamente desencontrados para diferentes partes do corpo, simultaneamente. Como se isso não bastasse, as sequências são sorteadas com moedas do I Ching no momento da entrada em cena. Isso resulta num antivirtuosismo eletrizante. Quem vivencia as suas peças (e o público porto-alegrense pôde testemunhá-lo no Teatro do Sesi em 2004, com o fantástico BIPED, de 1999) percebe o envolvimento e a atenção dos bailarinos à matéria mesma dançada, ao momento presente.
Outro traço fundamental dos trabalhos de Cunningham é o desenvolvimento da colaboração com resultados diretos na obra. Se o movimento fala por si mesmo, ele coexiste sem hierarquia com sons e objetos. A música e os elementos plásticos em cena (a noção de “cenário” foi fatalmente arranhada por ele) são encomendados a artistas sem qualquer combinação anterior e apresentados definitivamente em conjunto, pela primeira vez, no momento da estreia. Assim, bailarinos aprofundam a possibilidade de combinar movimentos prescindindo da música e dividindo o espaço cênico com esculturas e objetos, muitas vezes móveis (os móbiles de Calder e as almofadas metalizadas de Warhol são alguns dos exemplos célebres). No palco de Cunningham não há centro.
A grande chave é que os próprios trabalhos de Cunningham não buscam tampouco ser o centro do momento da performance. Buscam desmanchar qualquer sentido que se insinue, para retornarmos à percepção. Como explica Roger Copeland (segundo quem Cunningham conseguiu, mesmo sem ligação artística direta, levar adiante a proposta de distanciamento de Bertolt Brecht), o que ele faz é mover a política da percepção. Aborda, no coração, o “apetite semiotizante do espectador” (o termo é de Michèle Febvre). Retira a solução e a catarse da encenação para colocar ao espectador – a cada um de nós – a tarefa de perceber sua própria busca por sentido. Cunningham convida a ver que a percepção tem algo de único e pessoal, e assim nos inclui no momento presente da obra, abertos a intuir seus desdobramentos futuros. São esses os traços humanos que escolhe, traços não óbvios e nada figurados, porém urgentes num mundo que precisa cada vez mais encontrar formas de comunicação na diferença.
Ao se debruçar com amor incondicional sobre o movimento, Merce Cunningham abriu caminhos que continuarão frutificando para além do seu próprio. Merce nos deu um movimento que se basta. Só que para se bastar, o movimento não termina em si. Movimento é também o que ocorre entre a percepção de quem vê e a de quem dança. Precisamos desse vocabulário para dar forma a um mundo ainda não dito, ainda não admitido, em que a dança que não seja mencionada apenas como hermetismo e puerilidade, como um gaguejar. Os ícones estão se indo e nos deram chaves. Precisamos continuar a tarefa.
Tatiana da Rosa é coreógrafa, professora da Graduação em Dança UERGS/FUNDARTE e mestranda em Educação (UFRGS)
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