quinta-feira, 26 de março de 2009

Clarice e o Mar

"A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. A coragem de Lóri é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem.
Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual as pernas.
Mas uma alegria fatal – a alegria é uma fatalidade – já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seu mais adormecido sono secular.
E agora está alerta, mesmo sem pensar, como um pescador está alerta sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda – e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido secreto.
O caminho lento aumenta sua coragem secreta – e de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda! O sal, o iodo, tudo líquido deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo – espantada de pé, fertilizada."
(Clarice Lispector - "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres")



Escultura de Anneke de Witte
http://www.robbohle.nl/21gal-beeld/0ovbeeldhouwers/annekedewitte01nl.html

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