quinta-feira, 6 de maio de 2010

(...) Uma mulher histérica é capaz de acreditar em qualquer coisa a respeito de si mesma - que dormiu com Napoleão, que ofereceu seus lábios a Deus. Pode dizer que satisfez seu apetite sexual com bodes ou pôneis das ilhas Shetland. Pode confessar que fez amor com seis homens ao mesmo tempo e com cada um deles no auge de sua forma. Pode sacudir-se tanto com a música que até a memória de suas paixões se desintegra, desaba como um prédio em chamas. Tudo que não é de pedra arde. Os órgãos permanecem intactos, mármore mudo lambido com erotismo, êxtase projetado como numa tela branca. Tranquem todas as portas e ponham fogo na casa, onde a estátua está de pé, masturbando mentiras. Pois nesse lugar haverá ainda música, o arrepio da pedra em chamas e fogo jorrando gelo. Apunhalem a mulher várias vezes. Mergulhem o olhar cada vez mais fundo no sonho, nada senão a repetição da morte, olhos vidrados de êxtase, cada clic do obturtador uma mentira, uma fornicação. Quando a mulher de órgãos de mármore tenta deitar-se com Deus, a divindade atinge a menopausa. O que era drama antigo, nobre música de mito e lenda, termina em profilaxia. Aqueles que um dia se sentiram como personagens vêem seus papéis se desfazerem em pó e em serragem. Outrora o mundo foi jovem e as feridas eram ostentadas com orgulho, pois Deus havia posto o dedo nas feridas e elas não deveriam cicatrizar - deviam ser suportadas com bravura e sofrimento. Agora, porém, nós somos como chalupas avariadas na tempestade - e é possível enfiar um guarda-chuva pelas nossas feridas abertas -, mas não há sofrimento nem bravura. Nós e nosso personagens - porque nós somos os nossos personagens - afundamos como navios abandonados, chalupas por demais avariadas, incapazes de resistir à primeira tempestade.

Henry Miller



(Kevin Francis Gray)

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