domingo, 5 de julho de 2009

PaSSageirO

O menino sobe a lomba, sobe a lomba da escola, sobe com as costas pesadas, com o passo amortecido de cadarços ao contrário. A lomba é alta, é longa.
Quando ele estava saindo de casa ainda todos dormiam, ele estuda de manhã, todo dia de manhã, todo dia cedo antes da rua toda.
Lá no alto o prédio é grande mesmo longe. É enorme mais ainda por dentro, muitos degraus e painéis e colunas como pirulitos de caracóis enrolados por comprido, minhocas, parafuso. O eco, há muitos muitos mais que ele só, há eles todos dele mesmo, eles que sabem tudo que ele sabe.
A lomba escorre para baixo e ele passo a passo sem cadarços iguais.
No caminho as pedras e suas divisões impisáveis e as linhas retas dos portões, ele não pode encostar, ele escapa das frestas dos vãos, alto joelho alcança o passo.
E a pausa...

No chão... o pequeno corpo, fóssil ainda quente de um filhote de passarinho.
A pausa para olhar para baixo, no chão o mortinho roxo, transparente, verde. O bico enorme, os olhinhos com as pequenas pálpebras como casquinhas de pele de lagartixa, ele está caído. Ainda sem penas ele foi ao mundo cedo demais, desbravar sem saber voar.
O garoto toma coragem de se agachar para encostar no corpinho frio. Ainda se pode escutar o pio dos irmãozinhos no ninho alto do ar condicionado vizinho, casa de passarinho.
Coitado! acha o menino e sente que não há por que vacilar, toma o pequeno nas mãos e fica admirado com o peso nenhum, com a leveza cheia de morte, cheia de pavor de abandono. Como uma carcaça resta na terra, sem vida a alma o ar. Parece uma dúvida, parece que ele pode acordar se cutucar ou sacudir. Mas o garoto não tenta, ele espera o tempo, o tempo todo de uma eterna pausa. Ele resta ali, com o rosto em direção ao braço erguido parado e a mão firme.
O passarinho é nu na mão nua, é cru na pele clara, é criança depois de feto. Diante do fitar espanto há choro e lágrima de um menino perdido no caminho de um imenso cheio de vácuo, cheio de nada e vergonha de um enorme castelo de mármore que diz o que ele deve saber; ele pára no caminho porque se perdeu do ninho, porque ele lembrou da foto de quando era nu bebezinho no colchão florido sem lençol da praia no álbum do desenho do neném com roupa de coelho azul, a sua foto antiga, nu deitado no colchão. E o passarinho em sua mão comovida, envólucro apenas é o corpo vivo, apenas roupa do fogo intenso do verdadeiro ser.
Não há tempo para ficar, então ele encontra o canteiro próximo e abre um buraquinho na terra ainda cheia de sereno, a umidade enfia nas unhas a lama de terra fria, e a mão limpa leva o defuntinho até o buraco. Cuidado para colocá-lo certo, para acomodar a forma de pássaro que não cresceu para voar. Ele não vai longe, escondido coberto de terra vai abatumar, derreter, esfarelar. O menino sabe bem o que vai acontecer: o seu amigo vai virar um dinossauro, um fóssil milenar, alguém verá um dia...
A calça serve para limpar a mão da sujeira, esfrega os dedos pretos. E deixa ali o seu filhote de viagem, o seu encontro passageiro com a morte. A mão que amança o passarinho nunca vai esquecer que tocou o eterno, que salvou a pausa de um passo descuidado para ser um fóssil singelo. A memória de um encontro acaso no caminho rotineiro, do percurso interrompido de um dia inteiro, de uma vida toda escondida no canteiro.


Pintura de Wei Jia "Discover"

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