domingo, 18 de abril de 2010

porque eu quero

.


Esta primavera é bem seca, e o rádio estala captando sua estática, a roupa se eriça ao largar a eletricidade do corpo, o pente levanta os cabelos imantados, é uma dura primavera. E muito vazia. De qualquer ponto em que se está, parte-se para longe: nunca se viu tanto caminho. Fala-se pouco; o corpo pesa com o seu sono; em geral os olhos são grandes e inexpressivos. No terraço está o peixe no aquário, tomamos refresco olhando para o campo. Com o vento, vem do campo o sonho das cabras. Na outra outra mesa do terraço um fauno solitário. Olhamos o copo de refresco e sonhamos estáticos dentro do copo. "O quê!" "Eu não disse nada." Passam-se dias e mais dias. Mas basta um instante de sintonização e de novo capta-se a estática farpada da primavera: o sonho impudente das cabras, o peixe todo vazio, uma súbita tendência ao roubo, o fauno coroado em saltos solitários. "O quê?" "Nada, eu não disse nada." Mas percebo um primeiro rumor, como um coração batendo embaixo da terra e ouço o verão abrir caminho por dentro, e meu coração bate embaixo da terra - nada, eu não disse nada - e sinto a paciente brutalidade com que a terra fechada se abre por dentro, e sei com que peso de doçura o verão amadurecerá cem mil laranjas, e sei que as laranjas são minhas, porque eu quero.


Clarice Lispector


.

Nenhum comentário: